Page 220 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSEGO

            gina do mundo. Chove, e meus sentimentos, como se a chu-
            va os  vergasse,  dobram  seu  olhar  bruto  para  a  terra  da  ci-
            dade, onde corre uma água que nada alimenta, que nada lava,
            que  nada alegra.  Chove,  e eu  sinto  subitamente  a  opressão
            imensa de ser um animal que  não  sabe o  que  é,  sonhando o
            pensamento  e  a  emoção,  encolhido,  como  num  tugúrio,
            numa região espacial  do  ser,  contente  de  um  pequeno calor
            como de uma verdade eterna.





                 Nada me  pesa tanto  no  desgosto  como  as  palavras  so-
            ciais de moral. Já a palavra ' 'dever'' é para mim  desagradá-
            vel como um intruso. Mas os termos ' 'dever cívico",  ' 'soli-
            dariedade",  "humanitarismo", e outros da mesma estirpe,
            repugnam-me como porcarias que despejassem sobre mim de
            janelas. Sinto-me ofendido com a suposição, que alguém por-
            ventura faça, de que essas expressões têm que ver comigo, de
            que lhes encontro, não só uma valia, mas sequer um sentido.

                 Vi  há  pouco,  em  uma  montra  de  loja  de  brinquedos,
            umas coisas que exatamente me lembram o que essas expres-
            sões são. Vi, em pratos fingidos,  manjares fingidos para me-
            sas de bonecas.  Ao homem que existe, sensual, egoísta, vai-
            doso,  amigo  dos outros  porque tem o  dom  da  fala,  inimigo
            dos outros porque tem o dom da vida, a esse homem  que  há
            que oferecer com que brinque às bonecas com palavras vazias
            de some tom?


                 O governo assenta em duas coisas:  refrear e enganar.  O
            mal  desses  termos  lantejoulados  é  que  nem  refreiam  nem
            enganam.  Embebedam,   quando muito, e isso é outra coisa.

                 Se alguma coisa odeio, é um  reformador.  Um  reforma-
            dor é um homem que vê os males superficiais do mundo e se
            propõe curá-los agravando os fundamentais. O médico tenta
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