Page 280 - Fernando Pessoa
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LIVRO DO DESASSOSSEGO
minha imaginação (posterior), podem cansar, mas não doem
nem humilham. Às amantes impossíveis é também impos-
sível o sorriso falso, o dolo do carinho, a astúcia das carícias.
Nunca nos abandonam, nem de qualquer modo nos cessam.
Só uma vez fui verdadeiramente amado. Simpatias, tive-
as sempre, e de todos. Nem ao mais casual tem sido fácil ser
grosseiro, ou ser brusco, ou ser até frio para comigo. Algu-
mas simpatias tive que, com auxílio meu, poderia — pelo
menos talvez — ter convertido em amor ou afeto. Nunca
tive paciência ou atenção do espírito para sequer desejar em-
pregar esse esforço.
A princípio de observar isto em mim, julguei — tanto
nos desconhecemos — que havia neste caso da minha alma
uma razão de timidez. Mas depois descobri que não havia;
havia um tédio das emoções, diferente do tédio da vida, uma
impaciência de me ligar a qualquer sentimento contínuo, so-
bretudo quando houvesse de se lhe atrelar um esforço prosse-
guido. Para quê? pensava em mim o que não pensa. Tenho a
sutileza bastante, o tato psicológico suficiente para saber o
' 'como''; o ' 'como do como'' sempre me escapou. A minha
fraqueza de vontade começou sempre por ser uma fraqueza
da vontade de ter vontade. Assim me sucedeu nas emoções
como me sucede na inteligência, e na vontade mesma, e em
tudo quanto é vida.
Mas daquela vez em que uma malícia da oportunidade
me fez julgar que amava, e verificar deveras que era amado,
fiquei, primeiro, estonteado e confuso, como se me saíra
uma sorte grande em moeda inconvertível. Fiquei, depois,
porque ninguém é humano sem o ser, levemente envaide-
cido; esta emoção, porém, que pareceria a mais natural, pas-