Page 282 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSEGO
          quem quisera ver-se livre, sempre livre, no moço de fretes da
          responsabilidade de corresponder, da decência de se não afas-
          tar, para que se não suponha que se é príncipe nas emoções e
          se renega o máximo que uma  alma humana  pode dar.  A  fa-
          diga [de] se nos tornar a existência uma coisa dependente em
          absoluto de uma relação  com um sentimento de outrem!  A
          fadiga de,  em todo o caso,  ter  forçosamente  que  sentir,  ter
          forçosamente,  ainda  que  sem  reciprocidade,  que  amar  um
          pouco também!

               Passou  de  mim,  como  até  mim  veio,  esse  episódio  na
          sombra.  Hoje não resta dele nada,  nem  na minha  inteligên-
          cia,  nem  na  minha  emoção.  Não me trouxe experiência  al-
          guma que eu  não  pudesse ter deduzido  das  leis  da  vida  hu-
          mana cujo conhecimento instintivo albergo em  mim  porque
          sou humano.  Não  me  deu  nem  prazer  que  eu  recorde  com
          tristeza,  ou  pesar  que  eu  lembre  com  tristeza também.  Te-
          nho a  impressão de  que  foi  uma outra  coisa  que  li  algures,
           um incidente sucedido a outrem, novela de que li  metade, e
          de  que  a  outra  metade  faltou,  sem  que  me  importasse  que
          faltasse, pois até onde a li estava certa, e, embora não tivesse
          sentido, tal era já que lhe não poderia dar sentido a parte fal-
          tante, qualquer que fosse o seu enredo.

               Resta-me apenas uma gratidão a quem me amou.  Mas é
           uma gratidão abstrata, pasmada,  mais da inteligência do que
           de  qualquer  emoção.  Tenho  pena  que  alguém  tivesse  tido
           pena por minha causa;  é disso  que tenho pena,  e  não tenho
          pena de mais nada.

               Não é natural que a vida me traga outro encontro com
           as  emoções  naturais.  Quase  desejo  que  apareça  para  ver
           como sinto dessa segunda vez, depois de ter atravessado toda
           uma extensa análise da primeira experiência.  É  possível  que
           sinta menos; é também possível que sinta mais. Se o Destino
          o der,  que o dê.  Sobre as emoções tenho curiosidade.  Sobre
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