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hábitos civilizados, como as vacinas e tratamentos
oferecidos pelos médicos às doenças epidêmicas. O
episódio conhecido como Revolta da Vacina, ocorrido
no Rio de Janeiro em 1904, ilustra bem a luta das “classes
perigosas” pela preservação de seus hábitos e práticas
populares de cura, e do seu espaço de moradia, contra
o saber médico do início do século XX .
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Nenhuma outra revolta popular desse feitio foi vista no
Brasil. Primeiro pelos alvos diferenciados, os médicos,
perigosas” ou “classes pobres e viciosas”. As classes
Típico cortiço do perigosas eram a população pobre, “de cor”, habitante segundo por ser facilmente encarada como rejeição à
Rio de Janeiro, dos cortiços espalhados pelos centros da cidade do civilização, ao bem comum, como prova da barbárie em
século XIX que viviam as classes pobres do Brasil em pleno século
(Fotografia de Rio de Janeiro. Os cortiços, moradias coletivas, de
Augusto Malta aluguel, abrigavam desde estrangeiros pobres a libertos XX. Infelizmente, por muito tempo acreditou-se que
reproduzida em tudo o que fosse civilizado era bom, e que as sociedades
Nosso Século. São e escravos de ganho que tinham autorização de seus
Paulo: Abril Cultural, senhores para dormirem fora de casa, e eventualmente partiam de um estado de barbárie e evoluíam até a
1980, vol. 1). civilização numa curva sempre ascendente de bem-
africanos livres. De maneira geral, a população negra
estar social rumo ao progresso. Para os rebeldes de 1904
estava aglomerada nos cortiços e estalagens cariocas,
não era bem assim – serem obrigados a passar por um
ocupando assim o centro da capital.
procedimento doloroso e de eficácia duvidosa, como a
Os cortiços, perseguidos pelas autoridades policiais vacina antivariólica, além de terem seus lares invadidos,
e administrativas desde sua expansão no Rio, após e até demolidos, não parecia ser algo muito bom e nem
as décadas de 1850 e 1860, eram considerados civilizado.
nascedouros de criminosos e rebeldes, além de focos
de doenças, e foram alvo de medidas de controle social Na Bahia não houve uma revolta dessa natureza, mas
principalmente durante os períodos de epidemia, a capital da província vivenciou um processo muito
culminando com a política de demolição desses parecido com o ocorrido no Rio de Janeiro, embora com
espaços, como no caso do célebre cortiço carioca resultado um pouco distinto. Observamos por meio de
Cabeça de Porco (Chalhoub, 1996, p. 15-20) . O discurso vasta correspondência entre os higienistas, engenheiros,
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sanitarista em muito contribuiu para as políticas de autoridades policiais e administrativas que havia uma
reorganização do espaço urbano quando defendia o 4 Quanto ao episódio conhecido como Revolta da Vacina,
extermínio das habitações coletivas nos centros das ver SEVCENKO, Nicolau. A revolta da vacina: mentes insanas
em corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense. 1984; CARVALHO,
cidades, considerando-os empecilhos à difusão de
José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República
que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987;
58 3 O Cabeça de Porco foi um dos maiores cortiços do Rio CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na
de Janeiro, demolido em 1893. corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
ArqueologiA no Pelourinho