Page 73 - ARqUEOlOGiA NO PElOURiNhO
P. 73

UMA VISÃO HISTÓRICA DA ÁREA DO PROJETO



                           Vigilância: nisso consistia  o centro das  medidas   ordem do dia, nas discussões acadêmicas e jurídicas,
                           higienistas e modernizantes na Bahia, assim como   e um país mestiço e degenerado pela relevante
                           no Rio de Janeiro. Apesar das diferenças conjunturais   presença negra não poderia facilmente grassar entre
                           e das consequências, não podemos deixar de notar   as potências civilizadas do mundo moderno. O Brasil
                           as  semelhanças quanto às  políticas  de  controle  e   encontrava-se numa delicada situação. E suas mentes
                           repressão à população negra e pobre residente nos   mais ilustradas desejavam eliminar essa pecha que
                           centros urbanos de duas das mais importantes cidades   impedia o progresso e a ordem da recente república. A
                           do Império. Os costumes das classes perigosas deveriam   imigração de europeus, em especial arianos (alemães),
                           ser reformados por meio de regras e conselhos, que   demonstra a preocupação com a noção de civilização e
                           na prática consistiam em leis coercitivas, vigilância e   branqueamento da população, uma tentativa em parte
                           repressão; quando tudo isso falhasse, a exclusão era   frustrada, mas largamente defendida, e isso é o que nos
                           a melhor saída – afastar do centro da cidade a “grei   importa aqui.
                           numerosa que o parentesco reuniu”.
                                                                           Sampaio defende que não bastavam medidas
                           O fim do século XIX é marcado pelo advento de uma   higiênicas, se permaneciam os costumes populares.
                           república em busca de aceitação e legitimação, por   Sabemos que no Rio de Janeiro práticas usuais africanas
                           um mal-estar quanto à aceitação da cidadania dos   como a variolização  eram preferidas pelas camadas
                                                                                            20
                           negros recém-libertos e uma tentativa de disfarce de   populares em detrimento da vacina preconizada
                           um racismo baseado na cor da pele, que encontrou   pelos médicos e autoridades. A obrigatoriedade
                           durante séculos uma cômoda acolhida no estatuto   desse último procedimento levou pessoas comuns
                           jurídico da escravidão. A “raça” e a civilização estão na   a  uma  postura  vacinofóbica,  de  revolta  contra  essa
                                                                           imposição oficial e defesa dos costumes populares, que
                                                                           certamente prevaleciam nos cortiços e bairros pobres.
                                                                           Nosso engenheiro entendia que medidas higiênicas
                                                                           significavam mais que água e esgoto – segundo ele,
                                                                           era na vigilância dos costumes das classes pobres
          Botões de roupas                                                 que  consistia a  higiene, a  civilização  e o  progresso.
            presentes nos                                              Nelson Kon  Engenheiros, médicos, autoridades públicas, polícia,
           enterramentos
     associados aos vestígios                                              todos estavam de olho nos cortiços!
        da Capela de Nossa
     Senhora de Guadalupe,                                                  20   Segundo Sidney Chalhoub, variolização ou inoculação
       terreno do Corpo de                                                  do pus variólico consiste na prática de aplicar o pus
              Bombeiros.
                                                                            gerado pelas bexigas próprias da varíola no braço de seres
                                                                            humanos e retirá-lo após alguns dias. Essa prática era
                                                                            baseada na ideia de que da própria fonte do flagelo
     74                                                                     surge a possibilidade da purificação e da cura. Ver
                                                                            CHALHOUB, Sidney. Cidade febril, p. 149.





                                                                                              ArqueologiA no Pelourinho
   68   69   70   71   72   73   74   75   76   77   78