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UMA VISÃO HISTÓRICA DA ÁREA DO PROJETO
Vigilância: nisso consistia o centro das medidas ordem do dia, nas discussões acadêmicas e jurídicas,
higienistas e modernizantes na Bahia, assim como e um país mestiço e degenerado pela relevante
no Rio de Janeiro. Apesar das diferenças conjunturais presença negra não poderia facilmente grassar entre
e das consequências, não podemos deixar de notar as potências civilizadas do mundo moderno. O Brasil
as semelhanças quanto às políticas de controle e encontrava-se numa delicada situação. E suas mentes
repressão à população negra e pobre residente nos mais ilustradas desejavam eliminar essa pecha que
centros urbanos de duas das mais importantes cidades impedia o progresso e a ordem da recente república. A
do Império. Os costumes das classes perigosas deveriam imigração de europeus, em especial arianos (alemães),
ser reformados por meio de regras e conselhos, que demonstra a preocupação com a noção de civilização e
na prática consistiam em leis coercitivas, vigilância e branqueamento da população, uma tentativa em parte
repressão; quando tudo isso falhasse, a exclusão era frustrada, mas largamente defendida, e isso é o que nos
a melhor saída – afastar do centro da cidade a “grei importa aqui.
numerosa que o parentesco reuniu”.
Sampaio defende que não bastavam medidas
O fim do século XIX é marcado pelo advento de uma higiênicas, se permaneciam os costumes populares.
república em busca de aceitação e legitimação, por Sabemos que no Rio de Janeiro práticas usuais africanas
um mal-estar quanto à aceitação da cidadania dos como a variolização eram preferidas pelas camadas
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negros recém-libertos e uma tentativa de disfarce de populares em detrimento da vacina preconizada
um racismo baseado na cor da pele, que encontrou pelos médicos e autoridades. A obrigatoriedade
durante séculos uma cômoda acolhida no estatuto desse último procedimento levou pessoas comuns
jurídico da escravidão. A “raça” e a civilização estão na a uma postura vacinofóbica, de revolta contra essa
imposição oficial e defesa dos costumes populares, que
certamente prevaleciam nos cortiços e bairros pobres.
Nosso engenheiro entendia que medidas higiênicas
significavam mais que água e esgoto – segundo ele,
era na vigilância dos costumes das classes pobres
Botões de roupas que consistia a higiene, a civilização e o progresso.
presentes nos Nelson Kon Engenheiros, médicos, autoridades públicas, polícia,
enterramentos
associados aos vestígios todos estavam de olho nos cortiços!
da Capela de Nossa
Senhora de Guadalupe, 20 Segundo Sidney Chalhoub, variolização ou inoculação
terreno do Corpo de do pus variólico consiste na prática de aplicar o pus
Bombeiros.
gerado pelas bexigas próprias da varíola no braço de seres
humanos e retirá-lo após alguns dias. Essa prática era
baseada na ideia de que da própria fonte do flagelo
74 surge a possibilidade da purificação e da cura. Ver
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril, p. 149.
ArqueologiA no Pelourinho