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rotina mais temam é justamente o que podem ver de si mesmas num espelho que não é o
        seu.

          É só ao sair que descobrimos que não podemos sair. Podemos embarcar apenas em nosso
        próprio corpo. Às vezes aquelas malas todas, aqueles tantos sapatos e roupas, são apenas
        uma  tentativa  inconsciente  e  desesperada  de  evitar  a  descoberta  de  que  somos  nossa

        própria bagagem e viajamos apenas com tudo o que somos. Nem mais nem menos, nosso
        excesso de peso é a nossa nudez. É preciso abrir a porta da rua para compreender que ela só

        abre para dentro e só leva para dentro.
           É o que diz o poema de Fernando Pessoa, estampado no último andar do Aeroporto de
           Congonhas, em

        São Paulo. “Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no
        comboio do meu corpo ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os

        gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são. (...) A
        vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos não é o que vemos,
        senão o que somos.”

          Viajar  é  uma  escolha  profunda,  que  não  depende  da  distância  nem  do  destino.  Nela,
        estamos sempre sozinhos, ainda que no meio de hordas de turistas. As paisagens externas

        iluminam nossa paisagem interior, para o bem e para o mal. Não visitamos Roma, Nova York
        ou Paris, as pirâmides do Egito, o deserto do Saara, as savanas africanas, o Rio de Janeiro, a
        Amazônia ou o outro lado da rua. O que fazemos é revisitar a nós mesmos no contato com

        diferentes  culturas  e  percepções  de  mundo.  A  mudança  de  paisagem  ilumina  os  cantos
        escuros dos precipícios e as profundezas dos lagos que nos habitam. Sempre esperamos que

        exista  em  nós  um  belvedere,  é  esta  a  nossa  expectativa ao  viajar.  E  nem  sempre  é  um
        belvedere o que encontramos. Por isso toda viagem é subjetiva e, possivelmente, quando
        detestamos um lugar ou um povo, é porque não gostamos do que vimos em nós diante deste

        lugar e deste povo.
          Sempre que viajo cruzo com pessoas, cada vez mais pessoas, que se interessam apenas

        pelo que podem comprar nas lojas de cada destino. Que em geral são sempre as mesmas em
        toda parte. Transformam a experiência de viajar numa experiência de consumo. O planeta
        passa a ser um grande shopping com diferentes arquiteturas. E lá gastam tudo o que podem

        (e o que não podem) para manter a ilusão de que viajam em perfeita segurança porque esse
        mundo — o do consumo — conhecem bem. Acreditam secretamente que assim não se
        arriscam. O que não sabem, mas em algum momento vão acabar descobrindo, diante do

        espelho do banheiro, é que a única viagem impossível é a fuga de si mesmo.
          Existem ainda os que fotografam ou filmam tudo, o tempo todo, na tentativa de controlar

        sua  imagem  no  espelho.  Veem  o  mundo  protegidos  pela  lente  da  câmera.  Não
        experimentam, não se expõem, não vivenciam — apenas registram. Não o registro da vida
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