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Devagar, bem devagar, muito mais devagar do que o mundo lá fora nos exige, o vazio vai
virando uma outra coisa. Uma que nos permite viver. Descobrimos que nossos mortos nos
habitam, fazem parte de nós, correm em nossas veias fundidos a hemácias e leucócitos. Que
suas histórias estão misturadas com as nossas, que seus desejos se deixaram em nós. Que,
de certo modo, somos muita gente, multidão. Como também nós seremos em muita gente,
deixando, em cada um, ecos de diferentes decibéis e intensidades. Acolhemos então aquele
que nos falta de uma forma que nunca mais nos deixará. Como saudade. E como saudade
não poderá mais partir.
Somada, a vida humana é um rio barulhento de memórias correndo num leito feito de
tempo. Enquanto outras espécies sabem, sem que ninguém tenha ensinado, que precisam
voar para o sul para não sucumbir no inverno ou que devem escalar dezenas de metros de
uma árvore em busca da fêmea para se acasalar num momento preciso, nós perpetuamos
lembranças. Não é uma intuição prática no sentido ordinário do termo. Mas é tão vital
quanto o acasalamento ou a fuga do inverno.
Assim como a natureza tece mil expedientes para perpetuar seus genes, pertençam eles a
um chimpanzé ou a uma mosca, nós, cuja diferença evolutiva nos permitiu inventar a cultura
e ser na cultura, perpetuamos a vida através da memória. Já que, para nós, não há vida sem
a consciência da vida. Transmitimos as histórias, o conhecimento e os sentimentos dos que
se foram, tanto como humanidade quanto como indivíduo, como se fossem parte de um
DNA imaterial. Do contrário, seria impossível conviver com o privilégio de nossa espécie, a
consciência do fim.
Quem não entende isso acha que, quando doamos as roupas e os objetos de quem
amamos e se foi ou deixamos de chorar no cemitério, superamos a perda. Não acredito que
exista superação no sentido do esquecimento. O que acontece é que compreendemos que
aquela pessoa não estará mais no mundo externo, não pertence mais a ele. Mas também
não é mais um vazio que grita como nos primeiros meses, às vezes anos. Ela agora mora no
mundo de dentro, vive como memória nossa, em nós. E assim não está mais morta, mas viva
de um outro jeito. É o que me ensina João, o homem que divide comigo a aventura arriscada
de viver. De luto por sua própria mãe, percebo que a carrega nos olhos quando se maravilha
com a novidade do mundo.
Ele me ensina que a vida dos mortos em nós não é possessão nem fantasma. Nem é morte.
O mórbido é quando não conseguimos dar um lugar vivo para o morto. A memória fica então
pregada naquele momento de horror e a vida se torna impossível, porque a existência não é
água parada, mas rio que corre. Acontece quando alguém, pelos mais variados motivos, não
consegue fazer o luto e dar um lugar de saudade para a dor. Quando nos fixamos, seja num
dogma, seja numa falta, partes importantes de nós gangrenam. Mas, quando os mortos se
acomodam em nós como lembrança que muda segundo o viver de quem vive, tudo flui. Se