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há algo que a vida é em essência é movimento. E o luto é um movimento que reabre as
        portas para a vida ao romper com a rigidez da morte em nós. Por isso, para o luto não pode

        haver pressa, porque é grande e largo o gesto que temos de fazer acima e apesar do horror
        que nos atinge até mesmo em partes que nem sabíamos que existiam.
          Quando perdeu a mãe, João compreendeu por completo a poesia que Carlos Drummond

        de Andrade escreveu para a poeta Ana Cristina Cesar, que se suicidou aos 31 anos, atirando-
        se pela janela do 13° andar. Ela fala da diferença entre falta e ausência. “Por muito tempo

        achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta
        na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos
        meus  braços,  que  rio  e  danço  e  invento  exclamações  alegres,  porque  a  ausência,  essa

        ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.” É isso. A ausência não é falta. Ou, dito
        de outro modo, a falta nos come vivos. A ausência, por paradoxal que pareça, nos preenche.

             Há um filme de extraordinária beleza sobre a perda, a saudade e o lugar dos mortos em
                                                                                                   nós. Chama-se

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        Hanami — Cerejeiras em Flor           . Se você o encontrar, feche as cortinas, desligue o celular,

        prepare-se para algo especial. O filme conta a história de um homem que não gosta de sair
        da rotina em sua viagem mais longa e menos previsível. Ele parte em busca de sua mulher e

        só a encontra quando descobre que ela está dentro dele, nos gestos dele, no corpo e nos
        olhos que ele empresta a ela. É um filme sobre a morte que nos leva ao único lugar onde vale
        a pena chegar: à vida.

          Quando sofremos uma grande perda ou somos abalroados por uma catástrofe pessoal de
        outro gênero, as pessoas dizem, para nos consolar e com as melhores intenções, que tudo

        passa. Acho que, na verdade, nada passa. A frase mais precisa seria que tudo muda. Também
        nós,  que  aqui  estamos  como  matéria,  um  dia  seremos  apenas  eco.  Tanto  pelas  nossas
        células, que alimentam e se agregam a outros seres vivos, a partir da decomposição de nosso

        corpo, quanto pelas histórias, que transmitimos e permanecem além de nós. Aquela que fui
        ontem já mudou, a ruga que há um ano não existia agora é visível na pálpebra direita, minha

        percepção do mundo não é mais exatamente a mesma do mês passado, alterada por novas
        experiências que me alargaram. De certo modo, nascemos e morremos muitas vezes até o
        fim da vida. E é este o movimento que importa.

          Queria dizer isso à amiga que perdeu a mãe de repente. Mas agora ela ouve, mas não pode
        escutar. A dor a está comendo viva como as formigas africanas. Tudo é horror e absoluto.

        Mas com o tempo, um período só dela e que não pode ser determinado em parte alguma
        nem por ninguém, minha amiga vai começar a perceber que a mãe é uma ausência presente
        no formato das suas unhas, num certo jeito de mexer a cabeça quando fala, na tonalidade

        rara dos olhos. Está nas palavras e nas histórias que conversam dentro dela, na mitologia
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