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As mães não
deveriam morrer
Uma amiga perdeu a mãe, de repente. A notícia me alcançou por e-mail, agora que a internet
deixou o mundo pequeno. Estou longe, mas também aqui, neste lugar sem distância que é o
mundo virtual, mas onde o tempo é mais veloz e uma hora pode ser um pretérito definitivo
na disputa pela supremacia dos segundos. Como era antes, quando as notícias levavam
meses para chegar e o mundo sobre o qual falavam já tinha inteiro se transmutado, quando
as cartas eram sempre um retrato do passado? Agora tudo é agora. E os tempos se
confundem de outro modo. Mas se confundem.
Sei que as mães não deveriam morrer e, ao me conectar com o desamparo desta amiga,
sonhei com meus mortos. Meu avô sentava-se com minha avó ao redor da mesa da cozinha
como antes e como nunca, porque meu avô sabia que minha avó tinha morrido, e eu sabia
que meu avô tinha morrido uns 20 anos depois dela. E uma quarta pessoa, desconhecida de
todos nós reunidos naquela cozinha, sabia que eu também já tinha morrido, numa outra
época que ainda não chegou para mim. Mas comíamos bolinhos de chuva naquela mesa
porque compreendíamos que, no curto espaço de existência, neste soluço entre o
nascimento e a morte que pertence a cada um de nós, nem os sonhos devem ser
desperdiçados. E ali, enquanto eu dormia num quarto de hotel, éramos uma impossibilidade
lógica que conversava e que ria.
Quando perdemos alguém que amamos, a dor é tão extravagante que nos come vivos,
como se fosse uma daquelas formigas africanas que vemos nos documentários da National
Geographic. A dor está lá quando acordamos. Continua lá quando respiramos. Nos espreita
do espelho diante do qual escovamos os dentes pela manhã com um braço que pesa uma
tonelada. E, quando por um instante nos distraímos, crava seus dentes bem no coração.
Neste longo momento depois da perda, sabemos mais dos buracos negros do que os
astrônomos, porque carregamos um dentro de nós. E arrancamos cada dia nosso do interior
de sua boca esfomeada, com uma força que não temos, para que não nos sugue de dentro
para dentro.