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que nossa humanidade se reedita a cada manhã. Por isso nenhum homem pode ser uma ilha
        — na frase perfeita que já se tornou um clichê. Porque só somos no outro. E o outro só é em

        nós.
          Quem era Luciano Felipe da Luz antes de tomar posse do seu corpo pela escrita? Era
        Mercedez. Ganhou este nome por causa do caminhão Mercedes Benz que o atropelou um

        dia. Não tinha sido o único atropelamento. Ele fora atropelado 12 vezes. Numa delas, ganhou
        esse batismo tão literalmente das ruas. Sem reconhecimento, seu corpo levou ainda um tiro

        na cabeça, algumas facadas e mais tarde foi assinalado também pelas marcas da Aids.
          Arrastando seu corpo sem palavras pelas ruas de Porto Alegre, Mercedez não era visto. Há
        várias  formas  de  não  ver  um  outro.  Infelizmente  exercitamos  todas  elas  e  sempre

        inventamos  uma  nova.  Deixamos  de  reconhecer  um  homem  —  no  homem  —  quando
        pensamos que sua dor não nos diz respeito. É só ao desconhecer o outro como um igual que

        a desigualdade de condições de vida se torna aceitável. Comum, banal e, principalmente,
        alheia a nós.
          Com Mercedez era assim, um menino que cresceu nas ruas sem ser visto. Quando era visto,

        era sempre pelo olhar da violência. Do nosso, que não o enxergava, de outros, que como ele
        disputavam os  restos  da  rua, da polícia,  que  o  espancava.  Tudo  o que  conhecia  era  ser

        marcado por essa violência, por um olhar que não o via. Porque entre as piores formas de
        não ver alguém está aquela que só enxerga seu estereótipo. No caso dele, um garoto de rua,
        um  maloqueiro,  um  vagabundo,  um  sujo,  um  feio,  um  malvado.  Um  problema  para  as

        autoridades, uma mazela social para os especialistas, um estorvo que atrapalha o tráfego e
        suja as calçadas para a maioria. Não causa espanto que, sendo assim, Mercedez tenha sido

        atropelado tantas vezes, inclusive uma delas por um caminhão Mercedes-Benz.
          O  que  causa  espanto  é  que  Luciano  Felipe  da  Luz  tenha  sobrevivido  a  todos  os
        atropelamentos, inclusive o do seu batismo. Mais tarde, quando ele começou a se contar

        pela palavra (e não apenas pelas cicatrizes no corpo), dizia que era “filho da luz”. Se uma
        interpretação  parcial  dos  fatos  mostrava  que  ele  era  filho  do  abandono  —  de  vários

        abandonos —, ele se agarrava ao fio do sobrenome e com ele construiu uma outra verdade
        narrativa que repetia nas ruas: “Eu sou filho da luz”. Esse parto de palavras pode ter dado a
        ele uma maternidade que lhe permitiu viver dentro dos seus possíveis. A narrativa que fez

        de sua origem deu a ele uma mãe que era luz. E com o que pareceria pouco para muitos,
        Luciano Felipe da Luz desfez parte de suas trevas.
          Quando duas jornalistas, Clarinha Glock e Rosina Duarte, começaram a inventar um jornal

        escrito e vendido por garotos de rua em Porto Alegre, encontraram-no estirado na calçada
        junto às paredes de um colégio de elite onde guardava carros. Sujo, chapado e esquecido de

        si. Devagar, bem aos poucos, ele foi se agarrando a esse fio que permitia a vida — a essa
        maternidade narrativa que dava a luz e não a morte. Sem negar o Mercedez que era parte
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