Page 91 - C:\Users\Leal Promoções\Desktop\books\robertjoin@gmail.com\thzb\mzoq
P. 91
que nossa humanidade se reedita a cada manhã. Por isso nenhum homem pode ser uma ilha
— na frase perfeita que já se tornou um clichê. Porque só somos no outro. E o outro só é em
nós.
Quem era Luciano Felipe da Luz antes de tomar posse do seu corpo pela escrita? Era
Mercedez. Ganhou este nome por causa do caminhão Mercedes Benz que o atropelou um
dia. Não tinha sido o único atropelamento. Ele fora atropelado 12 vezes. Numa delas, ganhou
esse batismo tão literalmente das ruas. Sem reconhecimento, seu corpo levou ainda um tiro
na cabeça, algumas facadas e mais tarde foi assinalado também pelas marcas da Aids.
Arrastando seu corpo sem palavras pelas ruas de Porto Alegre, Mercedez não era visto. Há
várias formas de não ver um outro. Infelizmente exercitamos todas elas e sempre
inventamos uma nova. Deixamos de reconhecer um homem — no homem — quando
pensamos que sua dor não nos diz respeito. É só ao desconhecer o outro como um igual que
a desigualdade de condições de vida se torna aceitável. Comum, banal e, principalmente,
alheia a nós.
Com Mercedez era assim, um menino que cresceu nas ruas sem ser visto. Quando era visto,
era sempre pelo olhar da violência. Do nosso, que não o enxergava, de outros, que como ele
disputavam os restos da rua, da polícia, que o espancava. Tudo o que conhecia era ser
marcado por essa violência, por um olhar que não o via. Porque entre as piores formas de
não ver alguém está aquela que só enxerga seu estereótipo. No caso dele, um garoto de rua,
um maloqueiro, um vagabundo, um sujo, um feio, um malvado. Um problema para as
autoridades, uma mazela social para os especialistas, um estorvo que atrapalha o tráfego e
suja as calçadas para a maioria. Não causa espanto que, sendo assim, Mercedez tenha sido
atropelado tantas vezes, inclusive uma delas por um caminhão Mercedes-Benz.
O que causa espanto é que Luciano Felipe da Luz tenha sobrevivido a todos os
atropelamentos, inclusive o do seu batismo. Mais tarde, quando ele começou a se contar
pela palavra (e não apenas pelas cicatrizes no corpo), dizia que era “filho da luz”. Se uma
interpretação parcial dos fatos mostrava que ele era filho do abandono — de vários
abandonos —, ele se agarrava ao fio do sobrenome e com ele construiu uma outra verdade
narrativa que repetia nas ruas: “Eu sou filho da luz”. Esse parto de palavras pode ter dado a
ele uma maternidade que lhe permitiu viver dentro dos seus possíveis. A narrativa que fez
de sua origem deu a ele uma mãe que era luz. E com o que pareceria pouco para muitos,
Luciano Felipe da Luz desfez parte de suas trevas.
Quando duas jornalistas, Clarinha Glock e Rosina Duarte, começaram a inventar um jornal
escrito e vendido por garotos de rua em Porto Alegre, encontraram-no estirado na calçada
junto às paredes de um colégio de elite onde guardava carros. Sujo, chapado e esquecido de
si. Devagar, bem aos poucos, ele foi se agarrando a esse fio que permitia a vida — a essa
maternidade narrativa que dava a luz e não a morte. Sem negar o Mercedez que era parte