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nascidas. Como tudo que é vivo, a língua muda. E quanto mais se transforma, agrega
sinônimos e gírias, mais rica é a língua e também a cultura que ela expressa.
Como amo as palavras, adoro vê-las nascer e sofro quando morrem. Tenho esta nostalgia
de mundos. Mas sofro menos pelas que foram aposentadas porque perderam sentido — e
mais pelas invisíveis. Arrisco dizer que há um número maior de palavras invisíveis do que de
palavras arcaicas. No esforço de simplificar a linguagem para que o leitor possa compreender
o texto, por exemplo, abandonamos uma população de palavras mais intrincadas. Como
todas as escolhas, esta também não ficou impune. Simplificar, neste caso, pode ter
significado reduzir. E, junto com o número de palavras, também nós nos apequenamos.
O vocabulário também nos confina. Quando é limitado, é nosso mundo que se torna
emparedado. Tente se imaginar sem palavras. Ou melhor: tente ser sem palavras. É
impossível. Pensamos, sentimos, amamos, desejamos, brigamos, sonhamos, existimos —
com palavras. Sempre com palavras. Onde estamos? Não em São Paulo, Porto Alegre, Rio,
Brasília, Macapá, Recife, Paris, Miami, Pindamonhangaba ou Anta Gorda. Estamos nas
palavras. Habitamos as palavras. Somos palavras. Quando estamos e somos nas mesmas
poucas palavras, somos e estamos menos. É como ter a chance de viajar pelas galáxias e
preferir se fechar numa quitinete.
Em minhas andanças de repórter pelos muitos Brasis, entrei em contato com algumas
construções de linguagem e invenções de palavras que ampliaram minha capacidade de
perceber a realidade. Vinham de analfabetos que faziam literatura pela boca. Como os
Raimundos da Terra do Meio, no Pará, ou os habitantes dos muitos sertões do Nordeste. Ou
as “pegadoras de meninos” da floresta amazônica, no Amapá, que enquanto aparavam
bebês pariam palavras. Como Nazira Narciso, ao me explicar que fez o parto da neta porque
a parteira mais experiente havia se recusado por ser “barriga particular”. Ahn? “Não tem
marido”, cochichou ela. Ou a caripuna Dorica, de 96 anos, me explicando o ofício: “Parteira
não tem escolha, é chamada nas horas mortas da noite para povoar o mundo”.
Todos “cegos das letras”, como diziam, mas donos de um vocabulário tão rico como a vida.
Recriavam-se nas palavras como os grandes inventores da língua escrita, autores do cânone
como Guimarães Rosa e Manoel de Barros. Porque o vocabulário é pobre quando a vida é
pobre. Não materialmente, mas de experiências.
Não dá para saber o que veio antes, se a vida ou a palavra. Vivemos com um vocabulário
medíocre porque a vida é medíocre? Ou a vida é medíocre porque o vocabulário é medíocre?
O que se perde quando usamos as mesmas palavras para um mundo tão diverso é que
deixamos de enxergar o mundo em toda a sua largueza. Ele está lá, mas não conseguimos
nomeá-lo. Então, ele está — mas não para nós. É uma maneira de ser cego, surdo e mudo
com todos os sentidos funcionando.