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uma descendência inteira quase aniquilada pela morte de um. Afinal, ele dança sobre suas
antigas e brutais lembranças amparado por uma nova memória, representada pelos seus
descendentes, por aqueles que vão recordá-lo e produzir outras histórias e sentidos para a
trama das gerações. É mais do que uma magistral vingança — é uma dança.
Isso não significa que este (sobre)vivente tenha lidado melhor com seu trauma que todos
os outros. Cada um encontra seu caminho — e a maioria dos caminhos não aparece no
YouTube. Mas acho uma prepotência “ser contra” ou ridicularizar a tentativa de um outro
de lidar com suas marcas, dar um novo sentido àquilo que o constitui. Transformar em algo
mais que a dor o que era só dor. Pode não ser o seu caminho, mas isso não o impede de olhar
para a saída encontrada pelo outro com o profundo respeito que ela merece.
Quando as pessoas me contam suas histórias, começam a contar pelos seus
renascimentos. Pelo momento em que morreram de um jeito, por causa de um trauma, e
renasceram de outro. É ali que identificam seu início — ou reinício. Uma nova vida só é
possível quando contém a anterior e a sua quebra. O que atravanca nossa existência é ficar
fixado no trauma — enxergar a marca como uma morte que não renasce, como um corte
que não vira cicatriz. Por isso a palavra “sobrevivente” — e o sentido que ela tem no senso
comum — me incomoda. É como se vida fosse o que havia antes, algo que não pudesse se
quebrar, e o que temos agora fosse algo menor que a vida, uma mera sobre-vida. Me parece,
ao contrário, que a matéria da vida é justamente essa sucessão de quebras — e viver é dar
sentido a elas. Essa ideia vendida e consumida exaustivamente, de que a vida não pode ser
marcada nem no corpo nem na alma, tem causado enorme sofrimento às pessoas. Não o
sofrimento que nos leva a criar uma vida, mas aquele que nos leva a anestesiar uma vida.
Esse equívoco tem transformado gente que poderia viver em meros sobreviventes. Porque,
se não podemos ser marcados, se cada marca for vivida como algo mórbido e não como
parte do vivido, fixamo-nos na morte. Viramos uma ladainha que repete sempre o momento
mortífero e não consegue seguir adiante.
Ser... é ser em pedaços. O que nos impede de viver não é o trauma, mas a ideia de que
exista uma vida que possa prescindir deles. E o que nos humaniza é a capacidade de criar
algo vivo com nossas marcas de morte. Palavra escrita, literatura, como tanto se discutiu na
festa literária de Paraty. Dança, como o (sobre)vivente do holocausto. Jardins, bordados,
doces, móveis, dribles de futebol.
Como poderia dizer a poeta Adélia Prado, “uso todos os meus cacos para fazer um vitral”.
Cada vida humana é um vitral feito com as marcas de todas as nossas mortes. Sem os cacos,
nada há.
9 de agosto de 2010