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traumático. Qualquer contrariedade ou vivência não programada supostamente
estigmatizaria nossos filhos e aniquilaria seu futuro. Qualquer derrapada no script de nossos
dias nos assinala como catástrofe. Parece que viver se tornou uma experiência por demais
traumática para quase todos — e, se assim é, a única solução seria não viver. Mas a questão
não é o trauma — e sim o que cada um faz com ele.
Há algumas semanas participei de um debate no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo,
sobre Sobreviventes, o pungente documentário de Miriam Chnaiderman e Reinaldo Pinheiro.
Em minha fala, sugeri que não existem sobreviventes. Só é possível ser vivente. A palavra
sobre-vivente contém a ideia de viver apesar do vivido. E eu acredito que só é possível viver
por causa do vivido.
Em mais de 20 anos contando histórias de pessoas — e também minha própria história —
, percebo que as pessoas morrem e renascem muitas vezes numa vida só. Cada existência é
uma sucessão de pequenas mortes e renascimentos desde esse primeiro corte que nos
separa de nossas mães e dá início à nossa existência como indivíduo. Fico só imaginando
nesta época onde tudo vira trauma insuperável, o que aconteceria se as pessoas pudessem
se lembrar dessa expulsão do paraíso uterino. Haveria uma legião de homens e mulheres
incapazes de lidar com acontecimento tão terrível. Sem perceber que é só por ele, afinal,
que começamos a viver. Até então, somos todos apenas uma continuidade, um apêndice, do
corpo materno.
É verdade que, compreendendo o trauma como algo que nos marca, que nos mata
simbolicamente para que possamos renascer de outro jeito, nossa vida é cheia deles. O que
questiono aqui é a crença de que não deveria ser assim, a ilusão de que é possível — e o pior,
que é desejável — ter uma vida sem marcas no corpo e na alma.
É claro que alguns acontecimentos são devastadores — e lutamos para que não voltem a
se repetir com ninguém. Mas, mesmo nestes casos, me parece que a vida só é possível não
apagando o que é inapagável, mas fazendo algo novo com essa marca. Transformando-a em
algo que possa viver.
Recentemente, causou grande polêmica um vídeo no YouTube, onde Adolek Kohn, de 89
anos, “sobrevivente” do holocausto judeu, dança com sua filha e netos a música “I will
survive” (“Eu sobreviverei”), de Gloria Gaynor, em campos de concentração como o de
Auschwitz. Quem não tiver assistido pode encontrá-lo facilmente na internet. Muita gente
achou desrespeitoso com o sofrimento das vítimas do holocausto. A mim pareceu
emocionante. Concordo com a filha, a artista australiana Jane Korman, quando diz: “Essa
dança é um tributo à tenacidade do espírito humano e uma celebração da vida”.
Poder dançar no palco em que quase foi assassinado — e onde milhões de pessoas foram
exterminadas — é fazer algo vivo em vez de fazer algo mórbido. Especialmente poder dançar
com a continuidade de você — na companhia de todos aqueles que quase não existiram,