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sul do Brasil, cujo vocabulário se enriqueceu tanto pela apropriação promovida pelos
imigrantes europeus quanto pelo legado mais antigo, deixado junto com seu sangue por
índios, espanhóis e portugueses.
Eu falava um português vivo o suficiente para dar conta de uma experiência singular. É
natural, por exemplo, que no Sul tenhamos uma variedade maior de expressões para o frio
do que no Norte e Nordeste. Que, por sua vez, terá uma riqueza maior de termos forjados
numa vivência mais solar. Em São Paulo, me pasteurizei. Mantive a experimentação da língua
feita pelos personagens reais cujas histórias contava, mas minha própria voz ficou mais
padronizada.
Agora empreendo um caminho de volta, que não é volta porque sou outra. Voltar é sempre
uma impossibilidade. Ainda bem. Resgato o que há de mim nas palavras esquecidas, mas a
partir dessa experiência de uma década em São Paulo. Escolho ser uma soma dissonante —
alargada por tudo o que vivi. Dentro de mim ecoam as vozes de todos que me marcaram.
Há pouco escrevi um “cusco” numa crônica e fiquei muito faceira. Ah, sim, quando eu
cheguei em São Paulo eu era “faceira”, às vezes até “louca de faceira” e em alguns dias “mais
faceira que terneiro novo” — e não feliz. A vantagem, no meu caso, é que basta botar o pé
na casa da minha infância que tudo volta. Minha mãe mesmo, professora de português e de
literatura e a melhor doceira do país (na minha isenta opinião), tem um vocabulário próprio.
Há coisas que só ela diz. Ninguém sabe de onde tira. Nem ela. Essa invenção é parte essencial
do que ela é. E nos proporciona grandes momentos.
Sempre desejei que um dia alguém me perguntasse qual é a minha palavra preferida. Eu
tenho uma. É uma palavra que me tomou desde a primeira vez que a li. Eu intuo o seu
significado, mas resisto a buscála no dicionário. Às vezes tenho isso, gosto de conhecer por
mim mesma antes que alguém me explique. Posso passar anos apalpando uma palavra ou
um conceito dentro de mim até me decidir a partir em seu encalço no mundo de fora.
No caso dessa palavra, era importante que ela guardasse um pouco do seu mistério,
indevassável até para mim que a amava. Queria que ela ficasse um pouco hermética, já
que o amor é sempre misterioso. Quando a pronuncio dentro de mim, sou possuída por
ela. Eu sinto a palavra, vivo ela — nela. E nunca a escrevi em texto. Não sei se por ciúmes
ou por não achar nenhum contexto à altura. Não é um arcaísmo nem um regionalismo. É
uma palavra da língua “culta”. Título de um livro de um de meus autores preferidos, um
japonês chamado Junichiro Tanizaki.
Decidi dar a minha palavra para vocês.
VORAGEM.
Eu sou essa palavra. E agora, por amor, vou interromper esta coluna para finalmente
procurar o que ela significa no Dicionário Houaiss. (Dois minutos depois...) Aí está: “1. Tudo
aquilo que é capaz de tragar, sorver, destruir com violência; 2. Redemoinho de água que se