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dele, resgatou-se como Luciano. Parecia pouco, era tudo. O suficiente para cuidar do seu
corpo, agora que ele era constituído também por palavras, essas cicatrizes da alma.
Agora que não o viam mais como resto, mas como “jornalista e jornaleiro”. Agora que ele
se apresentava diante do cidadão, com seu crachá de jornalista e jornaleiro, e oferecia o
jornal que ele também escrevia. Senhor, senhora, meu nome é Luciano Felipe da Luz e eu
tenho uma história. Pela primeira vez, então, dois mundos dialogavam sem medos mútuos.
E descobriam que só as palavras atravessam pontes. São gestos no ar.
Infelizmente, não para ninguém, mas para a humanidade inteira, a Aids já o devastava há
tempo demais, e o cuidado com um corpo que agora podia ser marcado também pelo amor
só o roubou pouco tempo mais da morte — o que não é pouco, mas também é. Morreu na
luz. No Campo Santo, a parte do cemitério reservada aos pobres, foi sepultado pelos amigos
e colegas do jornal. Que perguntaram ao coveiro porque ele, como todos ali, era apenas uma
cruz com número — sem foto nem nome. A resposta era que ali os corpos são enterrados
com menos de sete palmos e desenterrados depois de algum tempo para dar lugar a outro
corpo de pobre.
Decidiram então registrar sua vida por escrito no jornal — e assim Luciano Felipe da Luz
morreu como um homem que viveu, morreu inscrito na história. Antes, eles apenas
desapareciam, invisíveis na morte como na vida. Agora, homens como ele, jornalistas e
jornaleiros, morrem. E isso é um jeito de permanecer como vida.
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Luciano Felipe da Luz, jornalista e jornaleiro do Boca de Rua , ficaria feliz ao saber que
um dia, depois da sua morte, seus colegas de jornalismo e jornaleirismo fizeram também um
filme. Nele, apresentavam Porto Alegre aos moradores de rua de São Paulo. Numa das
exibições, no Centro Cultural Santander, na capital gaúcha, um espaço cultural muito
valorizado e simbolicamente dentro do cofre de um antigo banco, foram barrados ao chegar.
Ensinado a interceptar roupas velhas e pobres, o segurança intimou: “Quem são vocês?”.
Um deles se adiantou: “Nós somos os autores”. E entraram.
Sim, eles são autores. Como autores podem viver. Como dizia Luciano Felipe da Luz: “A
minha vida é sempre a sua. Se liga gente boa”.
13 de setembro de 2010
13 O Boca de Rua é um projeto da ONG Alice, de Porto Alegre, iniciado em 2000. O jornal, publicado a cada três meses, conta histórias de um mundo
até então invisível, agora escrito, fotografado e grafitado por moradores das ruas de Porto Alegre, que se encontram uma vez por semana para decidir a
pauta e reeditar a vida. Os analfabetos ditam suas palavras, todos se escrevem de alguma maneira, com a ajuda de todos. Depois, é vendido nas ruas da
capital por seus autores. Cada um tem a sua cota de exemplares e a renda pertence a eles. Ao final desta coluna, Eliane fez um adendo: “Aos jornalistas e
jornaleiros que tornaram o Boca de Rua possível, a minha homenagem. Afinal, um jornal é exatamente isso — ou pelo menos deveria ser: o reconhecimento
da vida. Em palavras”.
14 As colunas sobre moradores de rua, como Eliane constatou, são as menos lidas, no acompanhamento da audiência. É como se as pessoas
nãoquisessem vê-los, nem nas ruas, nem em lugar algum. É por isso que ela continua escrevendo sobre moradores de rua. Até que enxerguem.