Page 234 - C:\Users\Leal Promoções\Desktop\books\robertjoin@gmail.com\thzb\mzoq
P. 234

“vagabundos” e lamentava o fim da ditadura. Quando a noite chegou, ele a levou ao plantão
        de polícia do pronto-socorro público. Lá ela viu uma mulher chegar gritando e chorando, com

        o corpo todo esfaqueado e o sangue saindo por todos os furos. Pela mão, a mulher levava
        um menino com cerca de cinco ou seis anos. Quando a jovem repórter viu os olhos do
        menino, deu alguns passos e desmaiou no corredor do hospital. Quando acordou, descobriu

        que tinha urinado na roupa durante o desmaio.
          O veterano a levou para casa no carro do jornal e, ao descobrir que ela morava sozinha,

        impôs  sua  autoridade  para  deixá-lo  entrar,  com  a  justificativa  de  que  era  sua
        responsabilidade  profissional  ter  certeza  de  que  ela,  uma  subordinada,  ficaria  bem.
        Enquanto a jornalista tomava banho, ele revistou a sua casa. Nada pior aconteceu porque

        ela arranjou um jeito de dizer que o sogro era professor universitário e a família do namorado
        deveria estar preocupada com o seu atraso. Por muitos meses ela se sentiu violentada e não

        conseguia  dormir  sozinha  em  casa.  Trocou  as  fechaduras  da  porta,  lavou  todas  as  suas
        roupas, porque o veterano repórter de polícia as tinha tocado, e botou fora tudo aquilo que
        não era documento, inclusive seus bichos de pelúcia. Assim giravam as redações há não tanto

        tempo. E acredito que essa cultura persista em alguns lugares do país.
          A reportagem que gerou a polêmica não é um episódio isolado. Assim como a teia de

        responsáveis é ampla e não se restringe à repórter e ao apresentador. E, por fim, a realidade
        a que assistimos hoje é parte de um processo histórico da imprensa brasileira, com capítulos
        ainda obscuros. Basta lembrar que conhecemos os nomes dos torturadores e dos legistas

        que assinavam os laudos falsos da ditadura, mas desconhecemos o nome dos jornalistas que
        foram cúmplices do regime também nos porões da repressão.

          Uma linha de investigação interessante para um livro ou uma pesquisa acadêmica seria
        entender como a cultura da violência e a relação de promiscuidade de parte dos jornalistas
        de  polícia  com  os  aparatos  de  repressão  da  ditadura  manteve-se  e  encontrou  novas

        expressões a partir da retomada da democracia. Uma dessas expressões são os programas
        considerados sensacionalistas, mas com grande audiência, com reportagens como a que
        agora discutimos.

          Estabelece-se no país a tolerância à violação dos direitos dos presos e dos pobres, mesmo
        na  democracia  —  bastando  apenas  fazer  uma  careta  e  dizer  que  os  programas  são

        “sensacionalistas”. Os “esclarecidos” dizem que não assistem “a esse lixo” — e isso seria
        suficiente. O “jornalismo sério” considera-se separado da ralé — e isso seria suficiente. Na
        prática, sabemos que, na guerra pela audiência, cada vez mais acirrada, a contaminação

        entre  o  jornalismo “sério”  e  o  “sensacionalista”  é  crescente  e  estimulada.  E, mesmo  na
        imprensa considerada séria, parte dos jornalistas que cobrem a área, como se diz no jargão,
        continua “comendo na mão da polícia”. E não é uma parte tão pequena assim.
   229   230   231   232   233   234   235   236   237   238   239