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e também para aqueles que gostam de expressar sua sanha porque pensam estar a salvo da
        sanha alheia.

          Por sorte, não chegamos a esse ponto. Mas, para que violências como a que assistimos
        não se repitam, não basta punir quem as comete, é preciso que cada um saiba que, ao dar
        audiência para o mau jornalismo, está escolhendo a barbárie. O telespectador também tem

        responsabilidade.  Cada  um  de  nós  tem  responsabilidade.  É  assim  numa  democracia:  a
        responsabilidade é compartilhada. Quem escolhe se posiciona e se responsabiliza. E quem

        se omite também escolhe e se responsabiliza.
          Esse episódio, que, repito, está longe de ser exceção, poderia ser usado para iluminar
        capítulos não contados, ou pouco contados, ou ainda mal contados da trajetória da imprensa

        brasileira. É importante compreender que, historicamente, parte do jornalismo dito policial
        tem  uma  relação  promíscua  com  a  polícia.  Desde  sempre.  Parte  porque  há  grandes  e

        decentes repórteres na história da crônica policial brasileira. Mas, arrisco-me a dizer, não
        representam a maioria.
          Na ditadura, parte dos jornalistas policiais foi conivente com a tortura dos presos políticos,

        da mesma maneira que já era conivente, antes, com a tortura dos presos comuns. E que,
        depois do fim da ditadura, continuou a ser conivente com a tortura largamente praticada até

        hoje nas cadeias e presídios do país. Há histórias escabrosas e ainda não bem contadas de
        repórteres que, inclusive, assistiam às sessões de tortura e até ajudavam a torturar. Estas só
        tomei conhecimento pela narrativa de colegas mais velhos — obviamente, nunca presenciei.

          Na transição democrática, nos anos 80, eu cheguei a conviver com jornalistas da editoria
        de polícia que andavam armados e achavam não só natural, mas desejável, a tortura de

        presos. Outros se limitavam a não denunciá-las. Era comum o repórter chegar à delegacia e
        ouvir a seguinte frase: “Espera um pouquinho, que estamos maquiando o elemento”.
          “Maquiar” o preso significava que estavam apagando as marcas de tortura, para que ele

        pudesse ser fotografado ou filmado. Algumas marcas, claro, restavam. E ninguém — nem
        repórter, nem fotógrafo, nem mesmo os leitores — achava estranho.

              É por causa dessa mentalidade, ainda hoje largamente disseminada entre a população
                brasileira, que as denúncias das torturas praticadas nas cadeias e prisões não causam
        revolta — para além das organizações de direitos humanos e alguns segmentos restritos da
                  sociedade. Como se, ao ser condenado ou apenas suspeito de um crime, as pessoas

                                            perdessem todos os seus direitos, inclusive os fundamentais.
          Se  a  tortura  de  presos  políticos  durante  a  ditadura  tem  grande  repercussão  na  classe

        média, a tortura contumaz dos presos comuns, praticada antes, durante e depois do regime
        militar, é tolerada por parte da população — até hoje. Se no passado alguém estranhasse as
        marcas  dos  presos,  bastava  alegar  “resistência  à  prisão”  —  “explicação”  até  hoje

        amplamente usada pelas polícias para justificar a morte de suspeitos. É assim que a pena de
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