Page 227 - C:\Users\Leal Promoções\Desktop\books\robertjoin@gmail.com\thzb\mzoq
P. 227

“adotou-a”. Ou aquele que adotou uma criança e “adotou-a”. São dois atos — e não um. E o
        segundo é mais difícil, demorado e cheio de percalços.

          Que o pai biológico de Luciane se responsabilize ou seja responsabilizado pelo sustento
        material da filha ninguém discute. Mas não é possível obrigá-lo a ocupar a função paterna
        no sentido mais amplo e subjetivo. Não há como obrigar ninguém a ser pai ou mãe no sentido

        pleno. Se o Superior Tribunal de Justiça acredita ter esse poder e que, para exercê-lo, bastaria
        obrigar um pai a pagar um valor em dinheiro, está completamente equivocado.

          Todos nós temos de lidar com o que consideramos ausência ou falta de afeto, em várias
        medidas ao longo da vida. Faz parte da complexidade das relações humanas. E faz parte do
        humano do nosso tempo acreditar que nunca se é amado o suficiente — não só pelos pais,

        mas pelos filhos, pelos namorados, pelos maridos e pelas esposas, pelos amigos, pelo mundo
        inteiro.

          Temos de lidar com as faltas inerentes a qualquer vida da melhor forma que conseguirmos
        — e lidar com isso significa crescer. E crescer significa parar de choramingar e seguir adiante.
        Acho grave que a Justiça considere legítimo cristalizar essa mulher adulta no lugar de vítima

        e de menina abandonada. E congelar esse homem no lugar de pai ausente e de algoz. A vida
        é mais complicada que isso. E um juiz tem o dever de compreender isso. As implicações

        públicas da sentença do STJ, na minha opinião uma decisão desvairada, ecoarão na vida de
        todos nós.
          Em entrevista à rádio CBN, a ministra Nancy Andrighi afirmou que a decisão do STJ “analisa

        os sentimentos das pessoas”. Se analisa, ministra, errou. Não cabe ao STJ ou a qualquer
        tribunal  analisar  “sentimentos”  e  desferir  punições  pela  ausência  ou  excesso  de

        “sentimentos”. Isso colocaria os juízes em lugar bastante indevido.
          A ministra também disse: “Não se pode negar que tenha havido sofrimento, mágoa e
        tristeza, e que esses sentimentos ainda persistam, por ser considerada filha de segunda

        classe”. Alguém conhece uma vida ou mesmo uma relação entre pais e filhos que não tenha
        sofrimento, mágoa ou tristeza mútuas? Como é que uma juíza pode comprar a versão de

        filha de “segunda classe” de uma forma tão barata?
          A ministra ainda disse mais: “Todo esse contexto resume-se apenas em uma palavra: a
        humanização  da  Justiça”.  Pelo  contrário,  me  parece  que  a  decisão  ignora  justamente  a

        complexidade e a ambivalência das relações humanas. E desumaniza, ao compensar afeto
        com dinheiro — o que também é mais um dado interessantíssimo da nossa época de relações

        monetarizadas.
          Luciane, por sua vez, afirma que não sente “raiva ou mágoa” do pai. Só quer “justiça”. Se
        colocar o pai no banco dos réus e dizer ao país inteiro que ele é um pai ausente, relatando

        suas desventuras nos mínimos detalhes, não é uma vingança monumental, eu não sei o que
        é. Mas que Luciane busque isso, podemos até compreender. Que um tribunal legitime a
   222   223   224   225   226   227   228   229   230   231   232