Page 222 - C:\Users\Leal Promoções\Desktop\books\robertjoin@gmail.com\thzb\mzoq
P. 222

imposta pela ditadura militar, boa parte dos vivos de hoje nem sequer tinha nascido ou ainda
        era criança, como eu. Agora, não. Estamos todos aqui.

          Conhecer a Amazônia exige um movimento — e um desejo maior. Assistir ao filme é muito
        fácil. Se puderem, assistam ao Xingu e, na última cena, uma das mais belas do nosso cinema,
        se enfiem na pele de um dos Irmãos Villas Bôas e percebam que, querendo ou não, é diante

        desse olhar que nós todos estamos — agora.
          Acho que esse é o mérito dos grandes filmes: não permitir que nos instalemos no conforto

        eterno da poltrona de cinema. Tornar impossível o pensamento cômodo de que aquilo não
        nos  diz  respeito  —  seja  porque  já  aconteceu,  seja  porque  é  a  dor  de  um  outro  muito
        diferente. Ou ainda porque não nos convém — e nos acreditamos a salvo. E aqui não se trata

        da  arte  utilitarista  ou  engajada,  mas  do  fato  de  que  os  bons  filmes,  assim  como  a  boa
        literatura, nos confrontam com pessoas complexas num mundo complexo — e não meros

        heróis num mundo plano. Como quando Cláudio Villas Bôas diz, ao perceber que, salvando,
        ele também destrói: “Somos o veneno e o antídoto”. Ou: “Há uma coisa deles que morre
        para sempre assim que a gente encosta”.

          É por acolher o conflito que os bons filmes, mesmo que nos contem de mundos e de gentes
        distantes, ecoam na nossa vida. Pescam nossos demônios internos e os fazem dançar diante

        dos nossos olhos. Os bons filmes, como os bons livros, nos transtornam por dentro, mesmo
        que ninguém fique sabendo, porque só a nós diz respeito; e nos transtornam de dentro para
        fora, como nesse caso, ao percebermos que a omissão também é um tipo de protagonismo.

        Os  bons  filmes  são  como  os  bons  governos:  acolhem  o  conflito  e  dialogam  com  o
        contraditório. Os maus filmes são como os maus governos: calam os conflitos e chamam o

        contraditório de “fantasia”. Xingu é um bom filme.
          Os realizadores de Xingu já tinham deixado explícita a intenção de, ao contar a epopeia
        histórica dos Irmãos Villas Bôas, criar uma oportunidade para pensar sobre os dilemas do

        Brasil atual. “Se o filme conseguir trazer a história desses caras para uma discussão do futuro
        e do presente seria muito legal. Apesar de ser um filme de época, é muito contemporâneo.

        Uma das coisas que me encantaram nessa história foi essa possibilidade de discutir coisas
        contemporâneas  contando  uma  história  do  século  passado”,  disse  à  imprensa  Cao
        Hamburger, o diretor, durante o lançamento do filme. E, em outro momento: “A ideia é que

        a gente repense a maneira como somos. O que é o progresso hoje? Que crescimento a gente
        quer?”.
          Também os atores, ao viverem o Xingu para encenar o Xingu, confrontaram-se com os

        conflitos  vividos  por  seus  personagens  —  mas  também  os  incorporaram  como  cidadãos
        diante da experiência para além da filmagem. “Os Villas Bôas fizeram uma previsão: que o

        encontro (entre brancos e índios) era inevitável e a civilização ia chegar à fronteira do rio.
        Eles chamavam isso de ‘abraço da morte’. De avião a gente vê claramente a devastação ao
   217   218   219   220   221   222   223   224   225   226   227