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dia, Emilia despediu-se, incomodada, e passei a temer que talvez ela não suporte olhar para
o quadro a cada quinta-feira.
Por que Emilia, uma mulher adulta, que me conta histórias escabrosas da vida real, se
horrorizou com a visão de uma vagina? Por que eu me encantei com a visão de uma vagina?
Quando vivo uma experiência de transcendência, em geral eu não quero saber sobre a
história da pintura que a produziu, porque temo perder aquilo que é só meu, a sensação
única, pessoal e íntima que tive com aquela obra. É uma escolha possivelmente besta, mas
faz sentido para mim. Por isso, eu quase nada sabia sobre A origem do mundo, para além do
fato de que eu a adorava. Só há pouco, ao ler um pequeno livro sobre um dos grandes nomes
da história da psicanálise, o francês Jacques Lacan, soube que ele foi o último dono da
pintura.
Nos anos 90, sua família doou o quadro para o Museu D’Orsay, em Paris, onde está desde
então.
Graças ao estranhamento de Emilia, transtornada que foi pela experiência artística quando
se preparava para passar o pano no chão, fui levada a um percurso inesperado. Descobri que
A origem do mundo causa escândalo desde que foi pintada. E agora quem está horrorizada
sou eu, mas pela ausência de horror em mim diante do quadro. Por quê? Por que eu não
sinto horror? O que há de errado comigo que não sinto horror?, cheguei a me perguntar. De
repente, nossas posições, a minha e a de Emilia diante do quadro, inverteram-se. Eu, que
não compreendia o horror dela, passei a suspeitar do meu não horror.
Eis uma breve trajetória da obra. A origem do mundo foi encomendada a Courbet, um
pintor do realismo, por um diplomata turco chamado Khalil-Bey. Colecionador de imagens
eróticas, ele pediu um nu feminino retratado de forma crua. E Courbet lhe entregou um par
de coxas abertas, de onde despontava uma vagina após o ato sexual. A obra teria sido
instalada no luxuoso banheiro do milionário, atrás de uma cortina que só se abria para
revelar o proibido para uns poucos escolhidos. Khalil-Bey teria perdido a pintura em uma
dívida de jogo, momento em que a tela passa a viver uma série de peripécias.
O quadro teve vários donos e, ao que parece, todos o escondiam atrás de uma cortina ou
de uma outra pintura. Na Segunda Guerra Mundial, algumas versões afirmam que chegou a
ser confiscado pelos nazistas do aristocrata húngaro ao qual pertencia. Em seguida, passou
uma temporada nas mãos do Exército Vermelho. Até que, após uma acidentada jornada, em
1954 foi comprado por Lacan e instalado na sua famosa casa de campo.
Até mesmo Lacan, um personagem pródigo em excentricidades e sempre disposto a chocar
as suscetibilidades alheias, ocultava o quadro com uma outra pintura, encomendada ao
pintor surrealista André Masson com esse objetivo. Como uma porta de correr, esse “véu”
retratava uma vagina tão abstrata que só um olhar atento a adivinhava. Apenas visitantes
especiais ganhavam o direito de desvelar e acessar a vagina “real”. Segundo Elisabeth