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Roudinesco,  a  biógrafa  mais  notória  de  Lacan,  o  psicanalista  gostava  de  surpreender  os
        amigos  deslocando  o  painel.  Anunciava  então  A  origem  do  mundo,  com  a  seguinte

        declaração: “O falo está dentro do quadro”. Boa parte dos intelectuais apresentados à tela
        ficava, como Emilia, bastante incomodada.
           Por quê?

          Que há algo perturbador no órgão sexual feminino não há dúvida. Até nomeá-lo é um
        problema.  Vagina,  como  tenho  usado  aqui,  parece  excessivamente  médico-científico.  É

        como pegar a língua com luvas cirúrgicas. Buceta ou xoxota ou afins soa vulgar e, conforme
        o interlocutor, pejorativo. É a língua lambuzada pelo desejo sexual — e, por consequência,
        também pela repressão. Não há distanciamento, muito menos neutralidade possível nessa

        nomeação. É uma zona cinzenta, entregue a turbulências, e a palavra torna-se ainda mais
        insuficiente para nomear o que Courbet chamou de A origem do mundo. Para Lacan, “o sexo
        da mulher é impossível de representar, dizer e nomear” — uma das razões pelas quais teria

        comprado o quadro.
          Em busca de respostas para o horror de Emilia, que, por oposição, revela o meu não horror,
        naveguei por algumas interpretações do quadro — e da perturbação gerada por ele. Jorge

        Coli, historiador, crítico de arte e autor de um livro sobre Courbet para a editora francesa
        Hazon,  assim  comentou  sobre  A  origem  do  mundo,  em  um  artigo  publicado  em  2007:

        “Parece-me a radicalização do processo de transformar a mulher em um objeto orgânico,
        pois ele esconde a cabeça (pensante) e os braços e pernas (elementos da ação). Vemos a
        ponta do seio e, sobretudo, o sexo”. Coli assinala que uma das questões do século 19 era a

        ameaça do desejo contida no feminino. Inerte, entregue à  contemplação, a mulher não
        ameaçaria.
          Em algumas manifestações escandalizadas, o fato de Courbet ter “reduzido” a mulher a

        um pedaço da anatomia foi considerado uma afronta. Uma mulher sem cabeça, sem braços,
        sem história. A pintura chegou a ser definida pelo escritor e fotógrafo francês Maxime Du
        Camp  como  um  “lixo  digno  de  ilustrar  as  obras  do  Marquês  de  Sade”.  Análises  mais

        psicanalíticas explicam o horror de quem olha pelo viés da castração. Diante do espectador,
        entre as coxas abertas da mulher se revelaria a ferida aberta, a falta, a impossibilidade de

        ser completo. As mulheres se horrorizariam pela constatação da castração, os homens pelo
        temor a ela.
          Se  alguns  olhares  produzem  pistas,  outros  reforçam  apenas  o  incômodo  que  a  obra

        produzia. O efeito do quadro já foi tentado em fotografias de mulheres, em geral prostitutas,
        colocadas  na  mesma  posição,  mas  o  resultado  revelou-se  diverso.  Ao  transpor  para  a

        fotografia, não é mais a imagem de Courbet, mas outra. Até que, em 1989, uma artista
        francesa, Orlan, fez algo marcante — e com grande potencial para gerar polêmica — a partir
        da obra original. Ela reproduziu a pintura trocando a vagina por um pênis — ou a buceta por

        um caralho. E chamou-a de A origem da guerra.
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