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legisladores, mas porque o Brasil mudou. A língua, obviamente, só muda quando muda a
        complexa realidade que ela expressa. Só muda quando mudamos nós.

          Historicamente,  o  “doutor”  se  entranhou  na  sociedade  brasileira  como uma  forma  de
        tratar os superiores na hierarquia socioeconômica — e também como expressão de racismo.
        Ou como a forma de os mais pobres tratarem os mais ricos, de os que não puderam estudar

        tratarem os que puderam, dos que nunca tiveram privilégios tratarem aqueles que sempre
        os tiveram. O “doutor” não se estabeleceu na língua portuguesa como uma palavra inocente,

        mas  como  um  fosso,  ao  expressar  no  idioma  uma  diferença  vivida  na  concretude  do
        cotidiano, que deveria ter nos envergonhado desde sempre.
                 Lembro-me de, em 1999, entrevistar Adail José da Silva, um carregador de malas do

            Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, para a coluna semanal de reportagem que eu
                                                                                                            35
              mantinha aos sábados, no jornal Zero Hora, intitulada “A vida que ninguém vê”                    . Um

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           — E como os fregueses o chamam?
           — Os doutor me chamam assim, ó: “Ô, negão!”. Eu acho até que é carinhoso.

           — O senhor chama eles de doutor?
          — Pra mim todo mundo é doutor. Pisou no aeroporto é doutor. É ó, doutor, como vai,

        doutor, é pra já, doutor...
           — É esse o segredo do serviço?
          —  Tem  que  ter  humildade.  Não  adianta  ser  arrogante.  Porque,  se  eu  fosse  um  cara

        importante, não ia tá carregando a mala dos outros, né? Sou pé de chinelo. Então, tenho que
        me botar no meu lugar.

          A forma como Adail via o mundo e o seu lugar no mundo — a partir da forma como os
        outros viam tanto ele quanto o seu lugar no mundo — conta-nos séculos de História do
        Brasil. Penso, porém, que temos avançado nas últimas décadas — e especialmente nessa

        última. O “doutor” usado pelo porteiro para tratar o condômino, pela empregada doméstica
        para tratar o patrão, pelo engraxate para tratar o cliente, pelo negro para tratar o branco
        não desapareceu — mas pelo menos está arrefecendo.

          Se  alguém,  especialmente  nas  grandes  cidades,  chamar  hoje  o  outro  de  “doutor”,  é
        legítimo desconfiar de que o interlocutor está brincando ou ironizando, porque parte das

        pessoas já tem noção da camada de ridículo que a forma de tratamento adquiriu ao longo
        dos anos. Essa mudança, é importante sublinhar, reflete também a mudança de um país no
        qual o presidente mais popular da história recente deixou sua marca, assinou sua passagem,

        com um apelido — um que virou nome e também sobrenome. Essa contribuição — mais
        sutil, mais  subjetiva,  mais  simbólica  — que  se  dá  explicitamente pelo nome, contida na

        eleição de Lula, ainda merece um olhar mais atento, independentemente das críticas que se
        possa fazer ao ex-presidente e seu legado.
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