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Se  o  “doutor”  genérico,  usado  para  tratar  os  mais  ricos,  está  perdendo  seu  prazo  de
        validade, o “doutor” que anuncia médicos e advogados parece se manter tão vigoroso e atual

        quanto sempre. Por quê? Com tantas mudanças na sociedade brasileira, refletidas também
        no cinema e na literatura, não era de se esperar um declínio também deste doutor?
          Ao pesquisar o uso do “doutor” para escrever esta coluna, deparei-me com artigos de

        advogados defendendo que,  pelo  menos  com  relação  à  sua  própria  categoria,  o  uso  do
        “doutor”  seguia  legítimo  e  referendado  na  lei  e  na  tradição.  O  principal  argumento

        apresentado para defender essa tese estaria num alvará régio no qual D. Maria, de Portugal,
        mais conhecida como “a louca”, teria outorgado o título de “doutor” aos advogados. Mais
        tarde, em 1827, o título de “doutor” teria sido assegurado aos bacharéis de Direito por um

        decreto de Dom Pedro I, ao criar os primeiros cursos de Ciências Jurídicas e Sociais no Brasil.
        Como o decreto imperial jamais teria sido revogado, ser “doutor” seria parte do “direito”

        dos advogados. E o título teria sido “naturalmente” estendido para os médicos em décadas
        posteriores.
          Há controvérsias. Em consulta à própria fonte, o artigo 9 do decreto de Dom Pedro I de

        fato  diz  o  seguinte:  “Os  que  frequentarem  os  cinco  anos  de  qualquer  dos  Cursos,  com
        aprovação, conseguirão o grau de Bacharéis formados. Haverá também o grau de Doutor,

        que será conferido àqueles que se habilitarem com os requisitos que se especificarem nos
        Estatutos,  que  devem  formar-se,  e  só  os  que  o  obtiverem,  poderão  ser  escolhidos  para
        Lentes”. “Lente” seria o equivalente hoje a livre-docente.

           Mesmo que Dom Pedro I tivesse concedido a bacharéis de Direito o título de “doutor”, o
           que me causa espanto é o mesmo que, para alguns membros do Direito, garantiria a
           legitimidade do título: como é que um decreto do Império sobreviveria não só à própria

           queda do próprio, mas também a tudo o que veio depois?
          O fato é que o título de “doutor”, com ou sem decreto imperial, permanece em vigor na
        vida do país. Existe não por decreto, mas enraizado na vida vivida, o que torna tudo mais

        grave.  A  resposta  para  a  atualidade  do  “doutor”  pode  estar  na  evidência  de  que,  se  a
        sociedade  brasileira  mudou  bastante,  também  mudou  pouco.  A  resposta  pode  ser

        encontrada na enorme desigualdade que persiste até hoje. E na forma como essas relações
        desiguais moldam a vida cotidiana.
          É  no  dia  a  dia  das  delegacias  de  polícia,  dos  corredores  do  Fórum,  dos  pequenos

        julgamentos que o “doutor” se impõe com todo o seu poder sobre o cidadão “comum”.
        Como repórter, assisti à humilhação e ao desamparo tanto das vítimas quanto dos suspeitos

        mais pobres à mercê desses doutores, no qual o título era uma expressão importante da
        desigualdade no acesso à Justiça. No início, ficava estarrecida com o tratamento usado por
        delegados, advogados, promotores e juízes, falando de si e entre si como “doutor fulano” e

        “doutor beltrano”. Será que não percebem o quanto se tornam patéticos ao fazer isso?,
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