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são todas formatadas, as atendentes me olham como se eu estivesse pedindo cérebro de
macaco em pão de urtiga australiana. Será que eu não compreendo que não é possível sair
do padrão? Comer no shopping ganha contornos de um sonho persecutório. Sinto-me
incapaz de levar comida para o meu pai.
Naquele momento, não apenas confronto a fragilidade recém-descoberta deles, mas
também a minha. Ao despedir-me de meus pais, temo que algo possa acontecer porque não
estarei ali para protegê-los, mas internamente duvido que possa de fato protegê-los. Imagino
catástrofes, há um torniquete ao redor do meu coração quando pego o avião de volta. Sei
bem agora que posso no máximo cuidar deles, como eles cuidaram de mim — e, de um modo
muito particular, ainda cuidam. Ninguém pode proteger ninguém, essa é só mais uma ilusão.
E, mesmo quando acreditamos compreender a vida, somos empurrados para um novo vazio
e restamos às tontas.
Antes de eu pegar o avião, eles o ônibus, minha mãe me empurra um pacotinho em papel
de presente brilhante. Eu sei o que é. Minha mãe sempre me dá um pijama. Não só para
mim, para todos. É um carinho e um desejo, o de nos ver na cama, aquecidos, a salvo, como
num tempo em que, todos sabemos, nunca existiu. O pijama já vem lavado, devidamente
desinfetado de todos os germes da loja e das mãos que o cobiçaram antes dela. O pijama
vem lavado dos males do mundo, minha mãe confiante no poder redentor dos produtos
modernos de limpeza. Não posso nem quero imaginar uma vida sem pacotes de papel
brilhante com um pijama cheirando a amaciante dentro.
Na semana seguinte voltamos a nos encontrar, agora para a cirurgia do meu pai. Minha
mãe de novo está com sua bolsa pesada, uma mala de rodinhas e seus pés claudicantes. É
um mistério como ela consegue andar tão rápido e ir a todos os lugares com aqueles pés.
Mas ela sempre está uma curva adiante de nós, em vários sentidos. Qualquer um levaria o
básico ao preparar a mala para uma viagem de saúde. Pijama, roupas de baixo, talvez um
roupão, escova de dentes... Minha mãe, eu tinha certeza, carregava também uma caixa de
docinhos. Docinhos mesmo, estes de aniversário de criança. Glaceados, caramelizados,
trufados, bombas de glicose concentrada.
Minha mãe jamais viaja sem uma caixa de docinhos. Já carregou caixas de docinhos no colo
por mais de mil quilômetros. Se há alguma criança nos arredores, os docinhos surgem no
formato de bichos, carros, gurias de tranças. “Por quê?”, pergunto com a boca cheia de leite
condensado. “Os doces de Ijuí são diferentes”, ela diz, com o tom das verdades absolutas.
Minha mãe sempre demonstrou afeto com comida. Desisti de levar o feijão dela congelado,
de Ijuí para São Paulo, quando o líquido encorpado, impregnado de linguiça caseira, escorreu
pelo compartimento das bagagens de mão do avião e pingou a milímetros da cabeça do
passageiro ao meu lado. Foi uma decisão difícil de comunicar a ela.