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públicos de outro são expressões dessa desigualdade. Quando o direito de acesso tanto a
uma quanto a outra não é assegurado, a situação de desamparo se estabelece, assim como
a subordinação do cidadão àquele que pode garantir — ou retirar — tanto uma quanto outra
no cotidiano. Sem contar que a cidadania ainda é um conceito mais teórico do que concreto
na vida brasileira.
Infelizmente, a maioria dos “doutores” médicos e dos “doutores” advogados, juízes,
promotores, delegados, etc estimula e até exige o título no dia a dia. E talvez o exemplo
público mais contundente seja o do juiz de Niterói (RJ), que, em 2004, entrou na Justiça para
exigir que os empregados do condomínio onde vivia o chamassem de “doutor”. Como consta
nos autos, diante da sua exigência, o zelador retrucava: “Fala sério...”. Não conheço em
profundidade os fatos que motivaram as desavenças no condomínio — mas é muito
significativo que, como solução, o juiz tenha buscado a Justiça para exigir um tratamento que
começava a lhe faltar no território das ruas — e nos corredores do prédio.
É importante reconhecer que há uma pequena parcela de médicos e advogados, juízes,
promotores, delegados, etc que tem se esforçado para eliminar essa distorção. Esses tratam
de avisar logo que devem ser chamados pelo nome. Ou por senhor ou senhora, caso o
interlocutor prefira a formalidade — ou o contexto a exija. Sabem que essa mudança tem
grande força simbólica na luta por um país mais igualitário e pela ampliação da cidadania e
dos direitos. A esses, meu respeito.
Resta ainda o “doutor” como título acadêmico, conquistado por aqueles que fizeram
doutorado nas mais diversas áreas. No Brasil, em geral isso significa, entre o mestrado e o
doutorado, cerca de seis anos de estudo além da graduação. Para se doutorar, é preciso
pesquisar e escrever uma tese e defendê-la diante de uma banca. Neste caso, o título é —
ou deveria ser — resultado da produção de conhecimento em sua área de atuação. É
também requisito para uma carreira acadêmica bem-sucedida — e, em muitas
universidades, uma exigência para se candidatar ao cargo de professor.
Em geral, o título só é citado no âmbito acadêmico — no currículo, nas comunicações por
escrito, nos órgãos de financiamento de pesquisa e na publicação de artigos em revistas
especializadas. Raramente alguns desses doutores são assim chamados na vida cotidiana,
seja na sala de aula ou na padaria. E, pelo menos os que eu conheço, caso o fossem,
oscilariam entre o completo constrangimento e um riso descontrolado. Não são esses, com
certeza, os doutores que alimentam também na expressão simbólica a abissal desigualdade
da sociedade brasileira.
Estou bem longe de esgotar o assunto aqui nesta coluna. Faço apenas uma provocação,
para que, pelo menos, comecemos a estranhar o que parece soar tão natural, eterno e
imutável — mas é resultado do processo histórico e de nossa atuação nele. Estranhar é o
verbo que precede o gesto de mudança. Infelizmente, suspeito de que “doutor fulano” e