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A caixa de docinhos era ali uma garantia de que algo permanecia imutável numa vida cujo
        controle nos escapava. Algo doce. Era a segunda vez que nos preparávamos para a cirurgia.

        Na  primeira,  o  plano  de  saúde  avisara  que  não  cobriria  o  “procedimento”  na  hora  da
        internação,  com  o  respeito  habitual.  Desta  vez,  a  pressão  de  meu  pai  subia  porque  o
        esqueceram  na  emergência  do  hospital.  De  novo  eu  tentava  protegê-lo.  E  de  novo

        fracassava.
          No dia seguinte, minha mãe me sussurraria na sala de espera. Meu pai estava desacordado

        em algum lugar do bloco cirúrgico. E eu tentava não imaginar o corpo aberto do meu pai. Ela
        sussurra, então: “Nós nos despedimos, sabe. Ele disse que a vida comigo foi muito mais do
        que ele sonhou e que ele foi muito feliz”. Eu queria dizer que ainda seriam felizes, mas não

        encontrei voz. Eu sabia que eles temiam essa cirurgia com um medo novo. E que mesmo
        depois dela o medo talvez não fosse embora. Quase 60 anos de casamento, e o amor dos

        meus pais é escandalosamente vivo. Vivo a ponto de sobreviver a despedidas desse tipo.
          Algumas horas mais tarde, quando tudo havia acabado, estremecemos ao ouvir o celular:
        “Ele está pedindo os óculos na UTI. Diz que precisa enxergar”. Minha mãe guardava naquela

        bolsa pesada dela os olhos e os dentes do meu pai. Será que é por isso que está tão pesada?,
        pensei. À noite, eu teria pesadelos com os dentes do meu pai na bolsa da minha mãe. Meu

        pai sempre pareceu usar os dentes com parcimônia, mas era apenas aparência. É verdade
        que ele mastiga cada bocado de comida quase tantas vezes e com tanta paciência quanto
        um macrobiótico, mas a vida, não. Na vida ele finca os dentes. E, desconfio eu, também em

        algumas partes da minha mãe, mas isso eu prefiro não investigar.
          Minha mãe devolveu primeiro os olhos do meu pai, depois os dentes. No dia seguinte ele

        reclamaria  que  ela  levou  tempo  demais  para  devolver  os  dentes  dele.  E  ainda  depois
        descobriríamos que a chave do cadeado da mala dele havia se perdido, junto com todas as
        chaves que abrem portas na vida deles. “Eu não sei quem perdeu as chaves, se fui eu ou ele”,

        balbuciou minha mãe, subitamente sem saber para onde levar seus pés. “Era um molho
        enorme de chaves.” Eu sabia que eram muitas e sabia que seriam encontradas. Em algum
        momento, nós sempre precisamos voltar a encontrar as chaves.

          Dias mais tarde, meus pais estão deitados na cama do hotel. Devagar, meu pai começa a
        se recuperar. Ele está lendo uma biografia de Getúlio Vargas. Minha mãe lê Cinquenta tons

        de cinza. Ela reclama que é tão mal escrito quanto uma daquelas novelas românticas de
        banca de revista, mas não cogita abandonar a leitura. Quando ela se distrai por um instante,
        meu pai rouba o livro dela para dar uma assuntada. Não sei se encontra o que procura,

        porque logo depois volta para Vargas. Eu sinto que poderia passar a vida lendo os dois.
          Sei que empreendi um caminho de volta para casa, mas essa viagem é apenas interna.

        Quando um filho parte, nunca há volta. Não deve mesmo haver volta. Há apenas esse tempo
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