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A dor dos filhos















        No  livro  Os  enamoramentos,  de  Javier  Marías  ((Companhia  das  Letras)),  uma  das
        personagens diz:
          — Os filhos dão muita alegria e tudo o mais que se costuma dizer, mas também, e isso não

        se  costuma  dizer,  dão  muita  pena,  permanentemente,  o  que  não  creio  que  mude  nem
        quando forem maiores. Você vê a perplexidade deles diante das coisas, e isso dá pena. Vê a

        boa vontade deles, quando estão a fim de ajudar e acrescentar algo próprio mas não podem,
        e isso também dá pena. Dá pena a seriedade deles e dão pena suas brincadeiras elementares
        e  suas  mentiras  transparentes,  dão  pena  suas  desilusões  e  também  suas  ilusões,  suas

        expectativas  e  suas  pequenas  decepções,  sua  ingenuidade,  sua  incompreensão,  suas
        perguntas tão lógicas e até a ocasional má intenção que possam ter. Dá pena pensar quanto

        lhes falta aprender e no longuíssimo percurso que têm pela frente e que ninguém pode fazer
        por eles, apesar de estarmos há séculos fazendo e não vejamos a necessidade de que todos
        os que nascem devam começar outra vez desde o início. Que sentido tem cada um passar

        pelos mesmos desgostos e descobertas, mais ou menos eternamente?
          O fragmento é parte das quatro páginas mais belas deste livro traduzido para o português

        por Eduardo Brandão. Se você for ler Os enamoramentos, talvez encontre outros momentos
        de que goste mais. Para mim, o que acontece da página 68 a 71 é, neste livro, o topo da
        escritura tão singular de Javier Marías. Não se trata de uma obra sobre o sentimento dos pais

        diante dos filhos, embora este também seja um “enamoramento”, mas esse pequeno trecho
        me capturou porque trata de algo que fala aos pais e às mães. E que poucas vezes foi tão
        bem dito.

          Lembro-me do momento exato em que olhei para a minha filha e senti essa dor, que era a
        dor que eu achava que pudesse ser a dela ou que tinha a certeza de que um dia seria a dela.

        Tive minha filha aos 15 anos, o que não me deu tempo de esquecer das dores da infância ou
        da perplexidade da infância, como pode acontecer com aqueles que se tornam pais em
        idades  consideradas  mais  recomendáveis.  Eu  me  lembrava  tanto  da  dor  quanto  da

        perplexidade, e aos 15 anos ainda não tinha feito o luto de nenhuma das duas.
          Minha filha tinha uns três ou quatro anos e estava sentada no chão tentando brincar. Eu
        via o seu esforço e via o seu fracasso. Ou talvez apenas estivesse projetando nela o que sabia

        que seria seu embate mais ou menos eterno. Mas creio que não, acredito que já era angústia
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