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Vidas de Rio e de Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização
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mo, principalmente. Considerando o episódio como um evento crítico,
tratamos dessas mudanças enquanto desdobramentos do desastre, cujos
efeitos são continuados e que, portanto, não se limitam ao dia do even-
to traumático (DAS, 1995; SILVA, 2010). Observar o aspecto alimentar na
comunidade é uma questão de grande importância, dados os aspectos
pragmáticos e ontológicos que permeiam essa questão, não apenas de-
vido ao risco progressivo representado pelo consumo de metais pesados
pelas pessoas e pelo alojamento visceral desses metais nos seus corpos,
mas também pelo aspecto emocional dessa visceralidade.
Algumas das práticas adotadas pelos moradores de Regência quanto ao
consumo do pescado podem ter resultados fisiologicamente felizes nos
seus corpos, do ponto de vista dos efeitos que o consumo dos contami-
nantes decorrentes do desastre pode causar, segundo o indicado por
técnicos das ciências naturais e do que é de conhecimento dos próprios
moradores. Entretanto, devemos pontuar que a concordância pragmática
entre o que é sugerido por representantes do saber tecnocientífico e as
práticas de conhecimento dos moradores locais – por não serem ampara-
das pelas mesmas economias ontológicas – não se dá por serem práticas
plenamente coerentes entre si, e o uso emocional desses elementos
viscerais (no presente caso, o peixe), como explicado por Taddei (2014a)
(quanto à questão da água), se diferencia totalmente do uso racional:
Estou convencido de que não se usa a água racionalmente, como
querem os técnicos; nem de forma consciente, como querem os
jornalistas. Dada a sua condição de elemento visceral, a água se
usa, e só pode ser usada, emocionalmente. O que ocorre é que há
usos emocionais mais ou menos ambientalmente felizes (“Dá no
mesmo”, diria um hidrólogo. Talvez, mas ainda assim só se res-
tringirmos nossa visão a um elemento apenas, dentro de um todo
complexo: a quantidade de água acumulada nos reservatórios.
Pensemos, ao invés disso, em como entender as formas como po-
pulações se relacionam com a água, e como atuar sobre isso de
14 No que tange às observações proferidas neste artigo sobre o cartão da Samarco enquanto
um corte de rede, é importante observar que tal ponto de vista pode não se encontrar em
consonância com outros que estão presentes na vila de Regência. Nesse sentido, frisamos
que a nossa perspectiva e as perspectivas de alguns dos moradores em sua diversidade de
posições quanto à essa questão não são e nem precisam ser as mesmas.
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