Page 202 - LIVRO - ENCONTRO DE RIO E MAR_160x230mm
P. 202

Vidas de Rio e de Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização

               veria ser considerado com o mesmo agravo.

               A contaminação do pescado e a alteração da sua constituição se mani-
               festam de diferentes formas, tanto visível e pragmaticamente, de acordo
               com o observado na fala do nosso interlocutor acima, como também de
               forma correlacionada, tendo em vista que a contaminação também era
               deduzida a partir da observação de políticas, como a de distribuição de
               água potável e a proibição da pesca, além da própria implementação do
                                                10
               cartão. Dada a característica visceral  da relação com o pescado, o impac-
               to sobre a privação do consumo do peixe e das vivências relacionadas a
               isso é, também, afetivo e emocional. Assim, os dados quantitativos sobre
               a continuação do consumo do pescado na vila após a lama podem ser
               também alarmantes, considerando o cenário de incertezas. Os dados de-
               monstram que 69,5% dos entrevistados em Regência conheciam alguém
               que permanecia consumindo o pescado (LEONARDO et al., 2017), o que
               corrobora com a fala de um dos nossos interlocutores sobre a não cessa-
               ção da procura:

                       Hoje, assim, o que a gente mais pescava, assim, o que a gente mais
                       pegava, quando a gente pescava, era… a pescadinha, o caçari, o
                       dorminhoco, a guaibira, a corvina, o robalo… entendeu? São os
                       peixes que é, que é mais procurado na comunidade hoje. Até hoje
                       mesmo, tem gente que procura ainda, sabendo que não tem como a
                       gente pescar. Mas… eles… vêm querendo peixe. Mas a gente não
                       pode pescar com, sem ter um laudo de se os peixes tão bons. Mais
                       tarde pode dar problema, e aí complica a gente, né. Fica ruim
                       dessa maneira aí.
                       [Entrevista realizada pela equipe do Grupo de Estudos e Pesqui-
                       sas em Pesca e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES)
                       em fevereiro de 2017. Grifo nosso].

               Assim, a contaminação visceral, encarnada nos corpos dos animais,
               ameaça se encarnar nos corpos humanos também por tempo indetermi-
               nado. Temos então que, apesar do corte de rede identificado, que altera
               a lógica alimentar na vila, a procura e o consumo do pescado ainda exis-

               10   “Seria possível dizer que a visceração precede a existência, que precede a essência – não
               como encadeamento processual, mas como condição de existência: a visceração é a existên-
               cia em movimento” (TADDEI, 2014b, p. 8).




                                               200
   197   198   199   200   201   202   203   204   205   206   207