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Vidas de Rio e de Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização
veria ser considerado com o mesmo agravo.
A contaminação do pescado e a alteração da sua constituição se mani-
festam de diferentes formas, tanto visível e pragmaticamente, de acordo
com o observado na fala do nosso interlocutor acima, como também de
forma correlacionada, tendo em vista que a contaminação também era
deduzida a partir da observação de políticas, como a de distribuição de
água potável e a proibição da pesca, além da própria implementação do
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cartão. Dada a característica visceral da relação com o pescado, o impac-
to sobre a privação do consumo do peixe e das vivências relacionadas a
isso é, também, afetivo e emocional. Assim, os dados quantitativos sobre
a continuação do consumo do pescado na vila após a lama podem ser
também alarmantes, considerando o cenário de incertezas. Os dados de-
monstram que 69,5% dos entrevistados em Regência conheciam alguém
que permanecia consumindo o pescado (LEONARDO et al., 2017), o que
corrobora com a fala de um dos nossos interlocutores sobre a não cessa-
ção da procura:
Hoje, assim, o que a gente mais pescava, assim, o que a gente mais
pegava, quando a gente pescava, era… a pescadinha, o caçari, o
dorminhoco, a guaibira, a corvina, o robalo… entendeu? São os
peixes que é, que é mais procurado na comunidade hoje. Até hoje
mesmo, tem gente que procura ainda, sabendo que não tem como a
gente pescar. Mas… eles… vêm querendo peixe. Mas a gente não
pode pescar com, sem ter um laudo de se os peixes tão bons. Mais
tarde pode dar problema, e aí complica a gente, né. Fica ruim
dessa maneira aí.
[Entrevista realizada pela equipe do Grupo de Estudos e Pesqui-
sas em Pesca e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES)
em fevereiro de 2017. Grifo nosso].
Assim, a contaminação visceral, encarnada nos corpos dos animais,
ameaça se encarnar nos corpos humanos também por tempo indetermi-
nado. Temos então que, apesar do corte de rede identificado, que altera
a lógica alimentar na vila, a procura e o consumo do pescado ainda exis-
10 “Seria possível dizer que a visceração precede a existência, que precede a essência – não
como encadeamento processual, mas como condição de existência: a visceração é a existên-
cia em movimento” (TADDEI, 2014b, p. 8).
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