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Vidas de Rio e de Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização

               O processo implementado pela empresa resultou em uma homogeneiza-
               ção de relações e vivências, antes diversas e fluidas, em torno de vários as-
               pectos da existência, incluindo as relações com o pescado e outros entes,
               com a alteração na lógica socioeconômica previamente estabelecida, que
               não exigia necessariamente a mediação financeira. Portanto, observamos
               que, neste ponto, não apenas ocorreu um corte de rede ontológico (no
               sentido da relação com o pescado) como também ocorreu a ressignifica-
               ção material de relações que se davam paralelamente, como as próprias
               relações de mercado, que, antes regidas pela comensalidade dos peixes,
               agora passaram por alterações radicais. Essas alterações se deram tanto
               no modo como são adquiridos os alimentos, e nas relações ali implicadas,
               como também no tipo de alimento consumido. Assim, na comunidade
               de Regência, o não acesso ao pescado trouxe consigo outras formas de
               relações que passaram a envolver a compra (de alimentos exógenos), ex-
               cluindo outras formas previamente exercidas na comunidade (baseadas
               em trocas e na comensalidade do pescado).

               Segundo Almeida (2013, p. 8): “Toda economia política pressupõe a exis-
               tência de entes. Esses são pressupostos ontológicos, e constituem maté-
               ria de uma economia ontológica”. Nesse sentido, a proibição da pesca e a
               implementação do cartão como soluções à presença dos rejeitos e metais
               pesados na alimentação local pressupõem a existência de outras fontes
               de alimentação como substitutos adequados para o pescado. Entretanto,
               para a população local, o consumo de carnes de animais comprados (a
               altos custos) nos mercados não parece se constituir como algo coerente
               com a relação que conhecem e cultivam em Regência com o pescado e
               as práticas associadas à pesca, as quais extrapolam a própria necessidade
               fisiológica do consumo de proteínas.
               Como os “pressupostos ontológicos são indispensáveis e não são sepa-
               ráveis da observação empírica” (ALMEIDA, 2013, p. 8), ontologicamente
               falando, o próprio pescado teve a sua essência alterada, de elemento cen-
               tral da comensalidade local para elemento símbolo de risco e incerteza.
               Essa alteração foi retratada em fotografias divulgadas por atingidos pelo
               desastre, que mostravam peixes mortos e doentes encontrados ao longo
               do rio Doce, modificações também percebidas por nossos interlocutores
               locais, como na fala transcrita abaixo:






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