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Capítulo 7
pode falar que não era, outro pode falar que era, aí junta tudo e
faz um detalhe ‘ah, o [nome omitido] falou que era peixe e era
peixe mesmo’, antigamente Regência não tinha saída pra lugar
nenhum, a saída daqui era pelo rio Doce, daqui pra Linhares e
Povoação, o que fazia aqui ficava aqui, daqui trocava farinha com
osseiro com biju, com tapioca, a gente dava o peixe, eles davam
farinha, tapioca, carne de porco dava isso, era tudo trocado, não
tinha nada vendido, não.
[Entrevista realizada pela equipe do Grupo de Estudos e Pesqui-
sas em Pesca e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES)
em fevereiro de 2017, grifo nosso].
Observando a fala acima transcrita de um dos nossos interlocutores,
indicamos que os processos de incorporação de outras proteínas foram
também desdobramento de outras relações desenvolvidas a mais longo
prazo na comunidade. Gostaríamos de frisar, no entanto, que o elemento
do auxílio emergencial implementado, associado às incertezas quanto à
proibição da pesca, age na forma de um corte de rede, pois passa a tornar
a escolha sobre a alimentação algo compulsória – no sentido de que a
chegada dos rejeitos, a proibição da pesca e a nova dinâmica de circula-
ção de valor na comunidade, representada pelo cartão, alteraram o ca-
ráter de escolha sobre a proteína a ser consumida pela família de modo
muito mais dramático do que as alterações gradativas na alimentação que
foram vivenciadas progressivamente na comunidade. Nesse sentido, tam-
bém é interessante pontuar outra transformação emblemática no sentido
alimentar e ontológico que ocorreu na comunidade em outro momento
específico, mediada pela implementação do projeto de conservação de
tartarugas marinhas TAMAR. Durante esse processo, a relação com as
tartarugas marinhas, que são os principais entes de proteção do proje-
to, foi muito significativamente transformada na comunidade, podendo
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7 A transformação à qual nos referimos diz respeito ao consumo da carne e de ovos de tar-
tarugas marinhas, alterado com a chegada do TAMAR em Regência, que tomou para si “[...]
o termo careba, que é a antiga denominação local para tartaruga, sendo careba mole ou de
couro o termo usado para denominar a Demorchelys coriácea; o termo careba dura ou ama-
rela usado para designar a Caretta caretta; enquanto o termo careba verde, a Chelonia mydas
(TAMAR, 2000). O termo carebeiro designava os que praticavam o extrativismo baseado
nesses animais [...]”. (TORRES et. al., 2017, p. 92). Para aprofundamento nas discussões sobre
as mudanças na vila com relação à atuação do TAMAR, ver CAMPOS, 2015; FREITAS, 2014
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