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Capítulo 7
SOBRE COMO SE DERAM OS DESVIOS E RUPTURAS NAS
RELAçÕES VISCERAIS E EMOCIONAIS COM O PESCADO
Identificadas as interrupções e os cortes de rede que indicamos como
importantes para pensar a respeito da alimentação na vila, apresentare-
mos alguns dos seus desdobramentos que implicam em conflitos onto-
lógicos (ALMEIDA, 2013) e em novas formas de (re)invenção (WAGNER,
2010) sobre as incertezas em relação ao pescado, evidenciando algumas
práticas desenvolvidas por nossos interlocutores e as suas justificativas
sobre a ausência da normalidade do consumo do peixe. As práticas estão
sendo trabalhadas como modos de enredamento e de atuação em relação
ao rompimento da barragem, modos em que destacaremos as agências
adotadas para responder às incertezas e às novas dinâmicas postas a par-
tir da chegada dos rejeitos de mineração em Regência Augusta.
É fato que o efeito desnorteador da chegada dos rejeitos foi imensurável,
incapturável por qualquer iniciativa de pesquisa, por mais complexa que
seja (ou possa vir a ser). Fatores de contradição como a curiosa proibi-
ção da pesca no mar, explicitada na seção anterior, e a não tão explícita
proibição da pesca no rio Doce – algo paradoxal pelo rio ser a fonte de
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onde emanou a chamada “pluma de rejeitos” na foz – terminaram por
deixar a população de Regência à mercê de uma decisão e com uma res-
ponsabilidade desconfortável, não subsidiada por informações técnicas,
que afeta seus cotidianos, desde relações sociais, modos de vida e eco-
nomias políticas, como também suas economias ontológicas (ALMEIDA,
2013). Deste modo, a alteração da relação com o pescado não se restringiu
apenas à relação pragmática de pescar ou não pescar, ou ainda, comer
ou não comer. Destarte, abordaremos as transformações na vila, tendo
como foco o pescado e as implicações dessas modificações abruptas na
relação com esses entes do rio e do mar, com importância primordial na
localidade, cujos efeitos foram desdobrados em dimensões muito além e
muito aquém das relações individuais de consumo (ou da sua privação) e
dos efeitos do consumo do pescado nos corpos humanos.
Como observado no relatório da pesquisa que estamos utilizando como
8 O termo “pluma de rejeitos” é derivado do termo técnico da hidrologia; contudo, o termo
mais utilizado nas localidades atingidas para designar os rejeitos que desaguaram do rio no
mar é “lama da Samarco”.
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