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Vidas de Rio e de Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização

               então, como o processo de identificação e cadastramento dos pescadores
               se delineou como ponto crucial gerador de incerteza na comunidade de
               Regência Augusta (assim como em outras comunidades). As reflexões a
               respeito dos marcadores da proibição da pesca e os desdobramentos so-
               bre a alimentação dos afetados se conectam, desta forma, no ponto de
               corte representado pelo auxílio emergencial (que passou a ser identifica-
               do pela empresa como “cartão benefício” no processo de implementação
               nas comunidades), como veremos.
               Uma vez que a identificação e o cadastramento fazem parte do processo
               de implementação do auxílio emergencial aos atingidos, a incorporação
               do cartão como acesso à renda submeteu a comunidade de modo com-
               pulsório e questionável a esse processo. No presente caso, tal processo
               está sendo observado a partir dos seus desdobramentos em relação à mu-
               dança sobre as possibilidades de acesso à alimentação; contudo, pode-
               se indicar outras discussões e críticas possíveis que também emergiram
               tanto no período de aplicação dos questionários como nas entrevistas
               realizadas até fevereiro de 2017. Por exemplo: (1) a própria modalidade do
               auxílio e a forma de implementação; (2) problemas com a entrega e os
               cadastros; (3) críticas quanto aos critérios sobre os contemplados; (4) pro-
               blemas familiares e questões de gênero que foram desdobradas a partir
               da implementação do auxílio em algumas residências; dentre outras. 6
               Com a nossa perspectiva, o corte de rede passou a ser acionado no senti-
               do de que a incorporação do cartão na dinâmica da comunidade alterou
               relações econômicas, políticas e ontológicas. Trabalharemos, especifica-
               mente, a mudança na alimentação e a inserção de proteínas exógenas na
               comunidade como um modo de entender a dinâmica do desastre a partir
               da centralidade da comensalidade dos peixes:

                       Antigamente comia muito mais [peixe], antigamente, carne de
                       boi na minha época de rapazinho novo era difícil, o mais que
                       a gente [comia] de carne era carne de porco, carne de bicho do
                       mato, mas carne de boi mesmo igual a gente compra no açougue
                       é de pouco tempo pra cá, eu falo isso porque eu sei, não vai adian-
                       tar eu contar mentira pra você porque chega lá na frente outro


               6   Ver também LEONARDO et al., 2017.




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