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CRÔNICA








                       Os vizinhos





                                Jayme Paviani


          Ao sair pela garagem às pressas fui surpreendido no elevador
        pelo perfume da vizinha do quarto andar. Depois o perfume se
        perdeu na rotina do dia. Os tênues fios eróticos se diluíram no
        trabalho.
          Mesmo as comunidades de um pequeno condomínio, dessas
        construções em série, edifícios em fila nas ruas das cidades,
        apresentam duas condições básicas: a liberdade individual das
        pessoas e o viver entre os vizinhos. Eis dois desafios que os homens
        enfrentam no dia a dia.
          Os vizinhos são a prova de que existem pessoas concretas.
        Nada mais real do que aquele que está ao teu lado, às vezes, tão
        solidário, outras vezes, tão chato.
          Um filósofo importante disse que a linguagem é a casa do ser,
        que os homens são vizinhos do ser. Eis uma lição simples e, ao
        mesmo tempo, profunda. Na realidade, conforme o velho Kant,
        apesar de todos os infortúnios nenhum ser humano pode viver
        sem os outros. Há sempre alguém no corredor ou no apartamento
        falando alto demais. No entanto, os ruídos das crianças e dos pás-
        saros não nos incomodam. A algazarra dos vídeos e da televisão
        e as brigas dos vizinhos são uma espécie de guerra doméstica.
          Há momentos durante o dia em que a luz do sol não projeta
        nenhuma sombra, embora o sol não alcance a todos do mesmo
        modo. Falando nisso, quem pode saltar sobre sua própria sombra?
          Todos os mortos são vizinhos absolutos.
          Caim e Abel eram irmãos e vizinhos.
          Muitos dos nossos amigos parecem ser vizinhos educados.
          O vizinho pode ser colega, chefe na repartição, pode ser o amigo
        que mora na porta do lado.
          Os galos nas cidades pequenas cantam na madruga e é doce
        ouvi-los sonolentamente, aliás, como o bater das horas de um
        relógio vivo. Só as portas fechadas das casas da praia, cheias de
        sol, ouvindo o silêncio e o vento, não ouvem o rádio do vizinho
        ou as conversas das pessoas.
          Milhares de pessoas no mundo não conhecem seus vizinhos.
        As pessoas nem sempre conhecem seus vizinhos. Isso explica a
        privatização do tempo  e o enfraquecimento das relações sociais
        e do engajamento público.
          Não basta saber viver no apartamento, pois é preciso saber
        suportar os vizinhos e os mosquitos especialmente no verão. Fora
        algumas exceções, morar em apartamento é um modo de crescer
        para todos os lados. Assim, muitas pessoas nunca foram capazes
        de descobrir seu lugar de tranqüilidade total no mundo.
          Jung dizia que sempre esperamos alguma coisa dos outros e
        isso mostra que eles e nós perdemos ou aprendemos o que seja
        a liberdade.

                                                      jpaviani@hotmail.com










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