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CINEMA
FOTOs/dIVuLGAçãO
Casa em chamas
Alessandra Rech
Filmes como O Anticristo, 2009, e Melancolia, 2011,
ambos de Lars von Trier, costumam permanecer ativos
em algum lugar do imaginário de seus espectadores.
Enigmáticos, definitivamente rompem com as interpre-
tações literais que inundam a sociedade do espetáculo
nas águas da passividade. Os cinéfilos têm nostalgia de
produções assim, que causam inquietação, que abrem
mais perguntas do que respostas. “Sinto que sou mais
completa quando não entendo”, já escreveu Clarice
Lispector. Para esse público, Mãe!, 2017 é o maior acon-
tecimento dos últimos anos. Com um elenco respeitável
(Jennifer Lawrence, Javier Barden, Michelle Pfeiffer e
Ed Harris), oferece, na experiência do caos crescente,
espelhos para as questões de cada um.
Obra do diretor Darren Aronofsky, que assina também Jennifer Lawrence, Javier Barden, os
o excelente e enigmático Cisne Negro, Mãe! pode soar protagonistas de ‘Mãe!’
familiar na sinopse: casal reforma a casa dos sonhos em trolado dos recursos naturais”, dirá o próprio diretor,
um lugar ermo. Já na primeira cena, porém, a previsibi- destacando que essa é apenas a sua visão.
lidade vai abaixo. Se torna difícil enquadrar o filme em Ordem e caos se sucedem: há algo de cíclico nessa
algum gênero, uma vez que não se trata de uma sucessão narrativa. Algumas cenas fazem crer que se trata de um
de sustos, como seria de se supor pela classificação de sonho. E sendo sonho, é pelo símbolo que se dará a
terror. É muito mais um desconforto crescente diante autodescoberta. Não existe casa isolada: uma horda de
dos acontecimentos que perturbam a protagonista e são influências, julgamentos, ambições e expectativas coabita
acolhidos com uma indiferença revoltante pelo marido, esses redutos em que se começa a vida a dois. “O que
um poeta em busca de inspiração. mais me dói é não ter sido suficiente para você”, diz a
Rendendo-se à carga simbólica, os personagens não protagonista, em uma das cenas finais, deixando claro
terão nome. Ele e Ela; O Homem e A Mulher que passam que porões sombrios e fendas sangrentas serão sempre
a viver com eles… “são fundadores, como os primeiros alegorias: terror mesmo é a vida cotidiana.
seres humanos da Bíblia”, dirá parte da crítica. “Evocam
a crise ambiental em que nos metemos, no uso descon- palavrear@gmail.com
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