Page 28 - Franz Kafka: A metamorfose
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gos por ano, nas férias, caminhava entre Gregor e a mãe; andavam bem devagar, o
        pai ainda mais vagarosamente do que eles, abafado dentro do velho sobretudo, ar-
        rastando-se laboriosamente com o auxílio da bengala, que pousava cautelosamente
        em cada degrau e que, sempre que tinha alguma coisa para dizer, quase sempre era
        obrigado a parar e a juntá-los todos à sua volta?
        Agora estava ali de pé firme, envergando urna bela farda azul de botões dourados,
        das que os contínuos dos bancos usam; o vigoroso duplo queixo espetava-se para
        fora da dura gola alta do casaco e, sob as espessas sobrancelhas, brilhavam-lhe os ol-
        hos pretos, vívidos e penetrantes. Os cabelos brancos outrora emaranhados dividi-
        am-se agora, bem lisos, para um e outro lado de uma risca ao meio, impecavelmente
        traçada. Lançou vigorosamente o boné, que tinha bordado o monograma de qual-
        quer banco, para cima de um sofá, no outro extremo da sala e, corri as largas abas
        do casaco, avançou ameaçadoramente para Gregor. Provavelmente, nem ele próprio
        sabia o que ia fazer, mas, fosse corno fosse, ergueu o pé a uma altura pouco natural,
        aterrando Gregor ante o tamanho descomunal das solas dos sapatos. Mas Gregor
        não podia arriscar-se a enfrentá-lo, pois desde o primeiro dia da sua nova vida se
        tinha apercebido de que o pai considerava que só se podia lidar com ele adotando as
        mais violentas medidas. Nestas condições, desatou a fugir do pai, parando quando
        ele parava e precipitando-se novamente em frente ao menor movimento do pai.
        Foi assim que deram várias voltas ao quarto, sem que nada de definido sucedesse;
        aliás, tudo aquilo estava longe de assemelhar-se sequer a uma perseguição, dada a
        lentidão com que se processava. Gregor resolveu manter-se no chão, não fosse o pai
        interpretar como manifestação declarada de perversidade qualquer excursão pelas
        paredes ou pelo teto. Apesar disso, não podia suportar aquela corrida por muito
        mais tempo, uma vez que, por cada passada do pai, era obrigado a empenhar-se
        em toda uma série de movimentos e, da mesma maneira que na vida anterior nun-
        ca tivera uns pulmões famosos, começava a perder o fôlego. Prosseguia ofegante,
        tentando concentrar todas as energias na fuga, mal mantendo os olhos
        abertos, tão apatetado que não conseguia sequer imaginar qualquer processo de
        escapar a não ser continuar em frente, quase esquecendo que podia utilizar as pare-
        des, repletas de mobílias ricamente talhadas, cheias de saliências e reentrâncias.
        De súbito, sentiu embater perto de si e rolar à sua frente qualquer coisa que fora
        violentamente arremessada. Era uma maçã, à qual logo outra se seguiu. Gregor de-
        teve-se, assaltado pelo pânico. De nada servia continuar a fugir, uma vez que o pai
        resolvera bombardeá-lo. Tinha enchido os bolsos de maçãs, que tirara da fruteira
        do aparador, e atirava-lhas uma a uma, sem grandes preocupações de pontaria. As
        pequenas maçãs vermelhas rebolavam no chão como que magnetizadas e engatil-
        hadas umas nas outras. Uma delas, arremessada sem grande força, roçou o dorso de
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