Page 30 - Franz Kafka: A metamorfose
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Capítulo 3


        Como ninguém se aventurava a retirá-la, a maçã manteve-se cravada no corpo de
        Gregor como recordação visível da agressão, que lhe causara um grave ferimento,
        afetando-o havia mais de um mês. A ferida parecia ter feito que o próprio pai se
        lembrasse de que Gregor era um membro da família, apesar do seu desgraçado e
        repelente aspecto atual, não devendo, portanto, ser tratado como inimigo; pelo con-
        trário, o dever familiar impunha que esquecessem o desgosto e tudo suportassem
        com paciência.
        O ferimento tinha-lhe diminuído, talvez para sempre, a capacidade de movimentos
        e eram-lhe agora precisos longos minutos para se arrastar ao longo do quarto, como
        um velho inválido; nas presentes condições, estava totalmente fora de questão a
        possibilidade de trepar pela parede. Parecia-lhe que este agravamento da sua situa-
        ção era suficientemente compensado pelo fato de terem passado a deixar aberta,
        ao anoitecer, a porta que dava para a sala de estar, a qual fitava intensamente desde
        uma a duas horas antes, aguardando o momento em que, deitado na escuridão do
        quarto, invisível aos outros, podia vê-los sentados à mesa, sob a luz, e ouvi-los con-
        versarem, numa espécie de comum acordo, bem diferente da escuta que anterior-
        mente escutara.
        É certo que faltava às suas relações com a família a animação de outrora, que sempre
        recordara com certa saudade nos acanhados quartos de hotel em cujas camas úmi-
        das se acostumara a cair, completamente esgotado. Atualmente, passavam a maior
        parte do tempo em silêncio. Pouco tempo após o jantar, o pai adormecia na cadeira
        de braços; a mãe e a irmã exigiam silêncio uma à outra. Enquanto a mãe curvada
        sob o candeeiro, bordava para uma firma de artigos de roupa interior, a irmã, que se
        empregara como caixeira, estudava estenografia e francês, na esperança de
        melhor situação. De vez em quando, o pai acordava e, como se não tivesse consciên-
        cia de que estivera a dormir, dizia à mãe:
        - Hoje tens cosido que te fartas! - caindo novamente no sono, enquanto as duas
        mulheres trocavam um sorriso cansado.
        Por qualquer estranha teimosia, o pai persistia em manter-se fardado, mesmo em
        casa, e, enquanto o pijama repousava, inútil, pendurado no cabide, dormia comple-
        tamente vestido onde quer que se sentasse, como se estivesse sempre pronto a entrar
        em ação e esperasse apenas uma ordem do superior. Em conseqüência, a farda, que,
        para começar, não era nova, principiava a ter um ar sujo, malgrado os desvelados
        cuidados a que a mãe e a irmã se entregavam para a manter limpa. Não raro, Gregor
        passava a noite a fitar as muitas nódoas de gordura do uniforme, cujos botões dou-
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