Page 23 - Franz Kafka: A metamorfose
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deixou o lençol onde estava e ele teve mesmo a impressão de surpreender-lhe um
        olhar de gratidão, ao levantar cuidadosamente uma ponta do lençol para ver qual a
        reação da irmã àquela nova disposição.
        Durante os primeiros quinze dias, os pais não conseguiram reunir a coragem ne-
        cessária para entrarem no quarto de Gregor, que freqüentemente os ouvia elogia-
        rem a atividade da irmã, que anteriormente costumavam repreender, por a con-
        siderarem, até certo ponto, uma lia inútil. Agora, era freqüente esperarem ambos
        à porta, enquanto a irmã procedia à limpeza do quarto, perguntando-lhe logo que
        saía como corriam as coisas lá dentro, o que tinha Gregor comido, como se com-
        portara desta vez e se porventura não melhorara um pouco. A mãe, essa, começou
        relativamente cedo a pretender visitá-lo, mas o pai e a irmã tentaram logo dissuadi-
        la, contrapondo argumentos que Gregor escutava atentamente, e que ela aceitou to-
        talmente. Mais tarde, só conseguiam removê-la pela forca e, quando ela exclamava,
        a chorar: Deixem-me ir ver o Gregor, o meu pobre filho! Não percebem que tenho
        de ir vê-lo, Gregor pensava que talvez fosse bom que ela lá fosse, não todos os dias,
        claro, mas talvez uma vez por semana; no fim de contas, ela havia de compreender,
        muito melhor que a irmã, que não passava de uma criança, apesar dos esforços que
        fazia e aos quais talvez se tivesse entregado por mera consciência infantil.
        O desejo que Gregor sentia de ver a mãe não tardou em ser satisfeito. Durante o
        dia evitava mostrar-se à janela, por consideração para com os pais, mas os poucos
        metros quadrados de chão de que dispunha não davam para grandes passeios, nem
        lhe seria possível passar toda a noite imóvel; por outro lado, perdia rapidamente
        todo e qualquer gosto pela comida. Para se distrair, adquirira o hábito de se arrastar
        ao longo
        das paredes e do teto. Gostava particularmente de manter-se suspenso do teto, coisa
        muito melhor do que estar no chão: sua respiração se tornava mais livre, o corpo
        oscilava e coleava suavemente e, quase beatificamente absorvido por tal suspensão,
        chegava a deixar-se cair ao chão. Possuindo melhor coordenação dos movimen-
        tos do corpo, nem uma queda daquela altura tinha conseqüências. A irmã notara
        imediatamente esta nova distração de Gregor, visto que ele deixava atrás de si, ao
        deslocar-se, marcas da substância pegajosa das extremidades das pernas, e meteu na
        cabeça a idéia de arranjar-lhe a maior porção de espaço livre possível para os pas-
        seios, retirando as peças de mobiliário que constituíssem obstáculos para o irmão,
        especialmente a cômoda e a secretária. A tarefa era demasiado pesada para si e, se
        não se atrevia a pedir ajuda ao pai, estava fora de questão recorrer à criada, uma
        menina de dezesseis anos que havia tido a coragem de ficar após a partida da coz-
        inheira, visto que a moça tinha pedido o especial favor de manter a porta da cozinha
        fechada à chave e abri-la apenas quando expressamente a chamavam. Deste modo,
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