Page 21 - Franz Kafka: A metamorfose
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se decerto para a porta; só então ressuscitava gradualmente a conversa antes inter-
rompida.
Dado que o pai se tomava repetitivo nas explicações - por um lado, devido ao acon-
tecimento de há muito não se encarregar de tais assuntos; por outro, graças à cir-
cunstância de a mãe nem sempre perceber tudo à primeira - , Gregor ficou por fim
a saber que um certo número de investimentos, poucos, é certo, tinham escapado
à ruína e tinham até aumentado ligeiramente, pois, entretanto, ninguém tocara nos
dividendos. Além disso, nem todo o dinheiro dos ordenados mensais de Gregor - de
que guardava para si apenas uma pequena parte - tinha sido gasto, o que originara
economias que constituíam um pequeno capital. Do outro lado da porta, Gregor
acenava ansiosamente com a cabeça, satisfeito perante aquela demonstração de in-
esperado espírito de poupança e previsão. A verdade é que, com aquele dinheiro
suplementar, podia ter pago uma porção maior da dívida do pai ao patrão, apres-
sando assim o dia em que poderia deixar o emprego, mas sem dúvida o pai fizera
muito melhor assim.
Apesar de tudo, aquele capital não era de modo nenhum suficiente para que a famí-
lia vivesse dos juros. Talvez o pudessem fazer durante um ano ou dois, quando mui-
to. Era, pura e simplesmente, uma quantia que urgia deixar de parte para qualquer
emergência. Quanto ao dinheiro para fazer face às despesas normais, havia que gan-
há-lo. o pai era ainda saudável, mas estava velho e não trabalhava havia cinco anos,
pelo que não era de esperar que fizesse grande coisa. Ao longo desses cinco anos,
os primeiros anos de lazer de uma vida de trabalho, ainda que mal sucedido, tinha
engordado e tornara-se um tanto lento. Quanto à velha mãe, como poderia ganhar a
vida com aquela asma, que até o simples andar agravava, obrigando-a muitas vezes
a deixar-se cair num sofá, a arquejar junto de uma janela aberta? E seria então justo
encarregar do sustento da casa a irmã, ainda uma criança com os seus dezessete
anos e cuja vida tinha até aí sido tão agradável e se resumia a vestir-se bem, dormir
bastante tempo, ajudar a cuidar da casa, ir de vez em quando a diversões modestas
e, sobretudo, tocar violino? A principio, sempre que ouvia menções à necessidade
de ganhar dinheiro, Gregor afastava-se da porta e deixava-se cair no fresco sofá de
couro ao lado dela, rubro de vergonha e desespero.
Muitas vezes ali se deixava estar durante toda a noite, sem dormir a esfregar-se no
couro, durante horas a fio. Quando não, reunia a coragem necessária para se en-
tregar ao violento esforço de empurrar uma cadeira de braços para junto da janela,
trepava para o peitoril e, arrimando-se à cadeira, encostava-se às vidraças, certa-
mente obedecendo a qualquer reminiscência da sensação de liberdade que sempre
experimentava ao ver à janela. De fato, dia após dia, até as coisas que estavam rela-
tivamente pouco afastadas se tornavam pouco nítidas; o hospital do outro lado da