Page 22 - Franz Kafka: A metamorfose
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rua, que antigamente odiava por ter sempre à frente dos olhos, ficava agora bastante
        para além do seu alcance visual e, se não soubesse que vivia ali, numa rua sossegada,
        de qualquer maneira, uma rua de cidade, bem poderia julgar que a janela dava para
        um terreno deserto onde o cinzento do céu e da terra se fundiam indistintamente.
        Esperta como era, a irmã só precisou ver duas vezes a cadeira junto da janela: a par-
        tir de então, sempre que acabava de arrumar o quarto, tornava a colocar a cadeira
        no mesmo, sítio e até deixava as portadas interiores da janela abertas.
        Se ao menos pudesse falar com ela e agradecer-lhe tudo o que fazia por ele, supor-
        taria melhor os seus cuidados; mas naquelas condições, sentia-se oprimido. É certo
        que ela tentava fazer, o mais despreocupadamente possível, tudo o que lhe fosse
        desagradável, o que, com o correr do tempo, cada vez o conseguia melhor, mas
        também Gregor, aos poucos, se ia apercebendo mais lucidamente da situação.
        Bastava a maneira de ela entrar para o angustiar. Mal penetrava no quarto, corria
        para a janela, sem sequer dar-se ao trabalho de fechar a porta atrás de si, apesar
        do cuidado que costumam ter em ocultar aos outros a visão de Gregor, e, como
        se estivesse pontos de sufocar, abria precipitadamente a janela e ali ficava a apan-
        har ar durante um minuto, por mais frio que fizesse, respirando profundamente.
        Duas vezes por dia, incomodava Gregor com a sua ruidosa precipitação, que o fazia
        refugiar-se, a tremer, debaixo do sofá, durante todo o tempo, ciente de que a irmã
        certamente o pouparia a tal incômodo se lhe fosse possível permanecer na sua pre-
        sença sem abrir a janela.
        Certa vez, coisa de um mês após a metamorfose de Gregor, quando já não havia por
        certo motivo para assustar-se com o seu aspecto, apareceu ligeiramente mais cedo
        do que era habitual e deu com ele a ver à janela, imóvel, numa posição em que pare-
        cia um espectro. Gregor não se surpreenderia se ela não entrasse pura e simples-
        mente, pois não podia abrir imediatamente a janela enquanto ele ali estivesse, mas
        ela não só evitou entrar como deu um salto para trás, diria que alarmada, e bateu
        com a porta em retirada. Um estranho que observasse a cena julgaria com certeza
        que Gregor a esperava para lhe morder. É claro que imediatamente se escondeu
        debaixo do sofá, mas ela só voltou ao meio-dia com um ar bastante mais perturbado
        do que era vulgar. Este acontecimento revelou a Gregor a repulsa que o seu aspecto
        provocava ainda à irmã e o esforço que devia custar-lhe não desatar a correr mal via
        a pequena porção do seu corpo que aparecia sob o sofá. Nestas condições, decidiu
        um dia poupá-la a tal visão e, à custa de quatro horas de trabalho, pôs um lençol
        pelas costas e dirigiu-se para o sofá, dispondo-o de modo a ocultar-lhe totalmente
        o corpo, mesmo que a irmã se baixasse para espreitar. Se ela achasse desnecessário
        o lençol, decerto o tiraria do sofá, visto ser evidente que aquela forma de ocultação
        e confinamento em nada contribuíam para o conforto de Gregor; neste instante, ela
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