Page 16 - Franz Kafka: A metamorfose
P. 16

Capítulo 2


        Foi apenas ao anoitecer que Gregor acordou do seu sono profundo, que mais pa-
        recera um desmaio. Ainda que nada o tivesse feito, de certo teria acordado pouco
        mais tarde por si só, visto que se sentia suficientemente descansado e bem dormido,
        mas parecia-lhe ter sido despertado por um andar cauteloso e pelo fechar da porta
        que dava para o vestíbulo. Os postes da rua projetavam aqui e além um reflexo páli-
        do, no teto e na parte superior dos móveis, mas ali em baixo, no local onde se encon-
        trava, estava escuro. Lentamente, experimentando de modo desajeitado as antenas,
        cuja utilidade começava pela primeira vez a apreciar, arrastou-se até à porta, para
        ver o que acontecera. Sentia todo o flanco esquerdo convertido numa única cicatriz,
        comprida e incomodamente repuxada, e tinha efetivamente de coxear sobre as duas
        filas de pernas. Uma delas ficara gravemente atingida pelos acontecimentos dessa
        manhã - era quase um milagre ter sido afetada apenas uma e arrastava-se, inútil,
        atrás de si.
        Só depois de chegar à porta percebeu o que o tinha atraído para ela: o cheiro da
        comida. Com efeito, tinham lá posto uma tigela de leite dentro do qual flutuavam
        pedacinhos de pão. Quase desatou a rir de contentamento, porque sentia ainda mais
        fome que de manhã, e imediatamente enfiou a cabeça no leite, quase mergulhan-
        do também os olhos. Depressa, a retirou, desanimado: além de ter dificuldade em
        comer, por causa do flanco esquerdo magoado, que o obrigava a ingerir a comida
        à força de sacudidelas, recorrendo a todo o corpo, não gostava do leite, conquanto
        tivesse sido a sua bebida preferida e fosse certamente essa a razão que levara a irmã
        a pôr-lho ali, Efetivamente, foi quase com repulsa que se afastou da tigela e se ar-
        rastou até meio do quarto.
        Através da fenda da porta, verificou que tinham acendido o gás na sala de estar.
        Embora àquela hora o pai costumasse ler o jornal em voz alta para a mãe e eventu-
        almente também para a irmã, nada se ouvia. Bom, talvez o pai tivesse recentemente
        perdido o hábito de ler em voz alta, hábito esse que a irmã tantas vezes mencionara
        em conversa e por carta. Mas por todo o lado reinava o mesmo silêncio, embora por
        certo estivesse alguém em casa. Que vida sossegada a minha família tem levado! ,
        disse Gregor, de si para si. Imóvel, a fitar a escuridão, sentiu naquele momento um
        grande orgulho por ter sido capaz de proporcionar aos pais e à irmã uma tal vida
        numa casa tão boa. Mas que sucederia se toda a calma, conforto e satisfação
        acabas sem em catástrofe? Tentando não se perder em pensamentos, Gregor refu-
        giou-se no exercício físico e começou a rastejar para um lado e para o outro, ao
        longo do quarto.
   11   12   13   14   15   16   17   18   19   20   21