Page 12 - Jornal Gueto 2017
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alizá-lo aqui, com os meus conterrâneos. E
comecei a observar a vida do imigrante em
Portugal.
Eu, os meus pais e os meus irmãos já
havíamos passado por muitas coisas más
devido ao racismo. O facto de todos os dias
correrem connosco da escola à pedrada por
sermos negros; de eu ser gozada na escola por
estar sempre entre as melhores alunas, quan-
As mulheres negras da Plataforma do não era mesmo a melhor; o facto de ter-
Gueto receberam uma carta mos de residir num barracão sem condições
que não podem deixar de partilhar.
dispensado pela própria câmara municipal,
isto porque tinham receio de nos pôr num
prédio para não causarmos distúrbios, pois
CARTA AO FEMINISMO NEGRO éramos seis irmãos na altura e sendo uma
zona de pescadores havia receio de despertar
uma reação racista. E assim foi. Pois na zona
onde moramos foi feito um abaixo-assinado
Olá mulheres negras, para nos retirarem de lá simplesmente por
Desde sempre que o meu sonho foi con- sermos negros. Só isso bastou para que a
tribuir de alguma forma para África. Estu- nossa presença incomodasse. As pessoas que
dar, adquirir um curso superior e regressar fizeram isso só lá passavam o Verão, nem lá
a África para ajudar o continente e o povo moravam.
Africano seria a melhor forma. Mas nada Entretanto pensei que com o tempo as coi-
disso foi possível por circunstâncias da vida. sas melhorassem, mas não melhoraram.
incluirmos outras instituições do estado como os cen-
Então pensei: não é por isso que vou deixar No meu local de trabalho passei pelas pi-
tros de detenção de imigrantes, as prisões e os hospitais
morrer o meu sonho. ores situações, uma instituição ligada à ig-
psiquiátricos, então esse número ultrapassa os quatro
Vim morar para um bairro ainda em barra- reja católica que faz trabalho social. O meu
mil. No entanto, nunca mais houve uma única conde-
cas numa zona que agora é de habitação de
nação dum polícia ou outro “agente da autoridade”.
luxo. Um dia fui convidada por um jovem
Apesar do relatório Macpherson de1999 ter provado “... eis aí a minha oportunidade de pelo
para assistir à Universidade Amílcar Cabral
que a Metropolitan Police é institucionalmente racista, menos tentar fazer algo pelas mulheres
da Plataforma Gueto. Foi lá que conhe-
não se impediu que esta continue a perfilar e agredir os negras do meu bairro, e como preciso
ci um grupo de mulheres interessadas em
negros e outras comunidades não brancas, duma forma de companheiras não vou perder a
agrupar-se a outras mulheres para formar o
muito mais intensiva e constante do que aos brancos
movimento feminista negro. E pensei: eis aí chance de conhecê-las e saber quais os
ingleses.
a minha oportunidade de pelo menos ten- seus objetivos.”
A Independent Police Complaints Comission (IPCC),
tar fazer algo pelas mulheres negras do meu
o organismo oficial que recolhe as queixas e investiga
bairro, e como preciso de companheiras não
este tipo de situações, tem sido amplamente acusada primeiro impacto negativo no trabalho foi
vou perder a chance de conhecê-las e saber
de profunda cumplicidade com a polícia e de falta de quando descobri da pior forma possível que
quais os seus objetivos.
independência no tratamento destas questões, tendo a perguntavam aos utentes se preferiam ser
Houve três palavras que me despertaram a
UFFC e a LCAPSV, como outros grupos comunitários, tratados por um trabalhador negro ou bran-
atenção: mulheres, sexismo e racismo. O pe-
assumido inteiramente esta luta contra a impunidade do co. Procurei saber o porquê dessa pergunta,
5 queno resumo feito do livro de bell hooks
Encorajamos os sobreviventes ao que me responderam que essa decisão
Estado, pela justiça daqueles que a polícia já matou.
e suas famílias a agir das ruas serviu para entender onde se encaixavam es- tinha sido tomada pelos técnicos desta insti-
Dizem “We encourage survivors and their families to
aos tribunais. 5 tas três palavras numa luta que poderá ser tuição e outras. Fiquei perplexa.
take action from the street to the courtroom” “They are
6 também a nossa. Se não posso realizar nada
Estão a matar os nossos bebés. killing our babbies” . PG A realização deste tipo de trabalho social
6
daquilo que queria em África vou tentar re-
tem sido possível em Portugal graças às ne-
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