Page 17 - Jornal Gueto 2017
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MUDAVA TUDO vida sem descodificarem a imensa informação a atitude da autarquia face aos mesmos (antes “Pessoas com apenas sonhos do lar que
NA MINHA VIDA escrita e falada, têm dificuldades acrescidas em e depois do teatro democrático da mudança já tiveram e pesadelos do dia em que
toda a sua vida e são mais sujeitas à dominação
de rosto na liderança da câmara municipal).
SE SOUBESSE LER e exploração. Aceder à escrita e à leitura é por Por isso não surpreende o facto de estarmos os viram ser arrasados por maquinaria
pesada, e escoltada por polícias
E ESCREVER isso para nós sinónimo de libertação e inde- em Setembro do mesmo ano e a situação sorridentes e felizes.”
pendência.
estar mais grave e a câmara responder sim-
Assim, ao alfabetizarmos fomentando a plesmente com mais desprezo, em relação às
adores de terrenos e poderes. Vamos record-
Como referiu a ativista negra feminista Char- politização da nossa consciência, utilizando o pessoas e suas vidas. Sobre o estado dos equi-
ar-nos da lista de demolições prometidas pelos
lotte Bunch (1979) o aumento da literacia método de Paulo Freire partindo de palavras pamentos sociais e a regularidade da limpeza
responsáveis políticos da câmara da Amado-
deve ser uma das tarefas fundamentais de um geradoras (palavras-chave) identificadas no dos espaços públicos, não se viram melhorias.
ra; depois do Bairro de Santa Filomena, para
movimento revolucionário. Para esta ativista nosso discurso, facilitamos entre nós “a ação Com o início do ano lectivo há mais proble-
onde irão as máquinas de destruição de lares?
ler e escrever para além de ser um valor em si e reflexão sobre o mundo para o transformar” mas a acrescentar à lista (falta de professores e
Para que outras freguesias e para que outras
mesmo, é vital à potenciação da nossa capaci- (Paulo Freire, 1970). auxiliares, início tardio de aulas na Amadora)
câmaras municipais? Quantas casas faltam
dade de interpretar e imaginar, de pensarmos Alexandra: “Se soubesse ler e escrever mudava é mais grave para gente que está privada de
ser destruídas para que a próxima campanha
sobre nós mesmas, resistindo à normatividade a forma de falar com a minha supervisora.” um simples tecto.
política corra bem a alguém que certamente
cultural em busca de alternativas. Os desalojados do Bairro de Santa Filomena,
não estará privada de escolhas face à sua ed-
Reconhecendo “a educação como uma prática são cada vez mais. Estamos a falar de pessoas
ucação, alimentação, acesso a rendimentos e
de liberdade” como referiu Paulo Freire (1970), cujas casas foram completamente destruídas, e
acesso a habitação?
a Plataforma Gueto numa ação semanal e reg- a quem não foi oferecida nenhuma alternativa
Quantas mais vidas serão arrastadas para o
ular em Moscavide, desde abril tem vindo a real de habitação. Resultado: ir à igreja matriz
desespero de nem sequer ter um lugar para
alfabetizar oito mulheres negras, numa agenda da Amadora e ver com os seus próprios olhos.
dormir? Quanto mais tempo se fingirá não
política contra o racismo e o sexismo, conju- Pessoas forçadas a passar o dia na rua para à
estar a ver, apenas para deixar responsáveis
gando a aprendizagem da palavra lida e escrita noite se abrigarem todas num espaço comum.
políticos em Paz, apenas para se gozar de uma
com o pensamento crítico e analítico sobre a Pessoas com apenas sonhos do lar que já ti-
simulação de Paz à porta fechada? Se a ideia
nossa condição. veram e pesadelos do dia em que os viram ser
SANTA FILOMENA arrasados por maquinaria pesada, e escoltada de justiça lembra-nos uma balança, lembre-
Lídia: “Se soubesse ler e escrever tinha tido mo-nos da matemática que permite que a
outra profissão melhor do que trabalhar na por polícias sorridentes e felizes.
Paz estabilize o braço desta ferramenta, isto
limpeza ou na casa de patroa.” Em Março deste ano, vários bairros da Am- Essa autêntica paródia ao serviço da vontade
quer dizer que só com a mesma quantidade
adora juntaram-se e deslocaram-se até à Câ- de sucessivos presidentes da autarquia e de
de justiça ficará a balança equilibrada entre
mara Municipal da Amadora. Tomaram a pa- seus eleitores xenófobos. Afinal, é gente negra
“...o alfabetizarmos fomentando a Justiça e Paz. Junte-se a nós neste combate.
lavra na Assembleia Municipal e levantaram que fica na rua; mãos de trabalho negras que se
politização da nossa consciência, utilizando o
várias questões. Mais uma vez se fizeram confirmam serem descartáveis nesta sociedade
método de Paulo Freire partindo de palavras
ouvir e não permitiram que as injustiças que que se ofende quando é chamada de Racista.
geradoras (palavras-chave)...”
vivem não fossem conhecidas pelo resto das Mas, porque se ofendem os que em tempo de
pessoas. Romperam com o silêncio de novo, crise tanto atiram pés negros para a mendi-
Porque a literacia politizada pode alterar rad- pois sabem o perigo que é ninguém saber das gagem em terra, como afogam cabeças negras
icalmente a perspetiva que cada pessoa tem violações que têm sofrido, e de como o silên- em águas mediterrânicas? É factual. Não haja
sobre a realidade e mudar a sua visão sobre cio alimenta a impunidade dos violadores dos dúvida.
a sua condição racial e papel sexual, a nossa seus direitos. É desprezo, seguido de mais desprezo per-
luta precisa de priorizar ações que garantam Em plena Assembleia Municipal surgiu a lis- ante os que erguem as paredes, limpam e
que todas as negras e negros leiam e escrevam, ta: desde a manutenção de equipamentos em deixam-nas polidas para serem mostradas em
através dos nossos próprios meios, organizan- bairros sociais, destacando a falta de limpeza campanha. A câmara Municipal da Amado-
do a alfabetização de pequenos grupos iletra- dos espaços públicos nos mesmos, e acaban- ra quer fabricar mendigos? Isso nunca será
dos nos nossos bairros e comunidades. (bell do por falar sobre a política de habitação. É a tolerado por pessoas idóneas, nem por gente
hooks, 1984). população negra guetizada que é vitima dessa correcta e justa. Por isso sabemos que vale a
O nosso analfabetismo é uma das evidências política executada furiosamente na Amadora! pena fazer um apelo a estas pessoas, pois há
do impacto do racismo e sexismo nas nos- O que temos a dizer sobre isto? Infelizmente, uma luta por justiça a ser travada. Começou
sas vidas e não há dúvidas que mulheres que não surpreende a ninguém, pois nenhum prob- faz muito tempo, e sim de alguma forma tem
trabalham desde crianças, que lutaram toda a lema dessa lista é novidade. Nem surpreende atrasado a agenda irresponsável dos negoci-
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