Page 22 - Jornal Gueto 2017
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FACADA NO ESPELHO  hante (Fanon, Os Condenados da  Terra).   a emigrar e a ter dois trabalhos limpando a   violência horizontal? Não seria mais logico e

  O que é necessário compreender e que nos   merda dos outros para ter apenas o dinheiro   até prático para nós esfaquear skinhead, um
 não nos matamos por chapéus, telemóveis, ou   suficiente para ser pobre, e os nossos pais a fi-  agente policial não hesita em espancar o nos-
 tirantes. Matamo-nos porque as nossas mães   carem largados a sua sorte, despojados do seu   so irmão ou um político de direita corrupto?
 Num acontecimento tragicamente recorrente,
 têm dois trabalhos, provavelmente a limpar a   orgulho de Africano forte capaz de sustentar a   O que há em nos que nos faz pensar que os
 mais um jovem negro foi morto por um igual.
 merda dos outros; os nossos pais não têm nen-  sua família depois de 40 anos a construir este   brancos são tao inatingíveis ao ponto de ter-
 Desta vez a tragédia ocorreu na amadora. A
 hum, isto para aqueles de nós que conhecem   pais que os usou e descartou; não pensam-  mos de direcionar a violência pela qual são
 vítima, de seu nome Lenine, tinha apenas de
 ou vivem com os pais. Portanto o dinheiro   os nos professores, mais um instrumento de   responsáveis para o nosso igual? O que igno-
 20 anos de idade. O comentário mais fácil de
 que entra em casa não chega para um bom   segregação do sistema de supremacia branca,   ramos e que ao matarmos os nossos irmãos
 fazer ou conclusão mais curta de se tirar por
 chapéu,  um  bom telemóvel,  ou um  tirante   que desempenha uma função de impedir não   não estamos a matar nenhum inimigo mas
 parte de alguém que vive em conformidade
 de  ouro  verdadeiro. Por  outro lado sabemos   só que os negros tenham a educação básica   sim a nós mesmos , ao mesmo tempo não so-
 com o sistema mundial de supremacia branca
 que não vamos para a faculdade pois desde a   e conhecimentos que lhes permita libertar-  mos nós que nos estamos a matar a nós mes-
 e «são eles que se matam a eles próprios», con-
 primeira classe nunca nenhum professor pux-  em-se mais tarde, como impinge toda a men-  mos mas sim o inimigo que nos esta a matar
 clusão que os meios de comunicação ajudam
 ou por nós, porque presumiu que não valeria   talidade ocidental, capitalista e racista e, asse-  usando as nossas próprias mãos.
 a tornam ainda mais fácil de tirar quando
 a pena perder o seu tempo a tentar ensinar o   gura por fim que os negros não saem do fundo
 ao  apresentar  a  notícia  ao  público  apelida  o
 filho do servente. Mesmo que fossemos para a   da escala social. Não temos em conta nenhum
 fenómeno como “ rixa de gangues “, ou seja,
 faculdade a possibilidade de arranjar um bom   destes fatores quando o nosso igual nos tira
 uma maneira mais curta de dizer «são eles que
 emprego onde pudéssemos comprar um bom   o telemóvel, olhamo-lo apenas como culpado
 se  matam  a  eles  próprios».  Apresentando-se
 chapéu, um bom telemóvel ou um bom tirante   da situação sem ver os verdadeiros culpados.
 assim como não tendo nenhuma relação com o
 é mínima. Mas sabe-se la se por poupanças   Vemo-lo como alguém que merece e ira sof-
 acontecimento, subtraindo-se qualquer culpa.
 do trabalho da nossa mãe ou pelo nosso « tra-  rer a nossa retaliação enquanto os verdadeiros
 Este tipo de pensando é da mesma natureza da
 balho» dentro ou a margem da lei consegui-  culpados se encontram no centro comercial a
 de quem afirma que «eram os próprios negros
 mos ter um chapéu de marca, um telemóvel   comprar um telemóvel que vale quatro vezes
 que capturavam outros negros para os vender-
 topo de gama ou um fio de ouro. Quando o   mais do que aquele que o irmão nos tirou.
 em como escravos aos europeus, logo não são
 nosso irmão nos tira esse bem material, que     Todos nos temos a tendência de nos deixar-
 os europeus os únicos ou principais causadores
 não passa disso mesmo em termos práticos,   mos dominar pelo ego, deixando de dar pri-
 de tráfico de escravos». Se este raciocínio não
 nós saímos de nós e somos cegados por uma   oridade ao bem comum o que é resultado da
 fosse falacioso quando X paga a Y para matar
 raiva para com o nosso igual pois só nos sabe-  nossa infeção pelo vírus que é o pensamento
 Z, X seria absolvido em tribunal já que não
 mos o quanto nos custou possuir aquele ob-  ocidental em que o individuo se sobrepõe ao
 teria nenhuma relação com o homicídio, mas
 jeto. Não conseguimos ver o plano mais am-  grupo. Este domínio do ego em nos negros,
 na realidade X e o causador do homicídio, fa-
 plo, não vemos que o nosso irmão quis tanto   combinado com o complexo de inferioridade
 zendo 2 vítimas: Z, que foi assassinado e Y,
 o chapéu, o telemóvel ou o tirante tanto como   criado pelos europeus desperta em nós a ne-
 o autor material do crime que sujou as mãos
 nós mas não teve outro meio para consegui-lo   cessidade de, sempre que possível, demonstrar
 aliciado por X. Assim como os europeus orig-
 a não ser tira-lo do próprio semelhante; não   o nosso valor ou poder de modo económico,
 inaram, com a sua demanda por mão-de-obra
 vemos todo o sistema capitalista que nos in-  intelectual ou, do modo mais frequente, o físi-
 gratuita para uma mais eficaz acumulação
 jeta um consumismo desmedido aproveitando   co. Essa demonstração do poder físico, se não
 de bens e capitais, o contexto em que os ne-
 o nosso complexo de inferioridade enquanto   for através da dança ou do desporto, traduz-se
 gros caçavam e vendiam outros negros, assim
 negro que esse próprio sistema criou desde o   normalmente em violência. A gravidade dis-
 como  todo  o  Ocidente  atual é  responsáv-
 inicio do saque dos seres humanos de Áfri-  so é que essa violência resulta em que sejamos
 el pelo contexto mundial em que os negros
 ca, e que os faz pensar que precisamos dos   nos mesmos as vítimas dela. A causa é que os
 “ se matam uns aos outros “ quer em África,
 seus bens materiais, como chapéu, telemóvel   poucos que têm os meios de produção, o poder
 na América ou aqui no cu de Europa como
 e joias para nos sentirmos de algum modo   económico,  têm-nos quase na totalidade. A
 aconteceu recentemente com Lenine. O que
 valorizados perante um branco; não pensam-  fina fatia que resta deste bolo tem de se di-
 alguns desconhecem, outros ignoram e muitos
 os num sistema colonial cujo único objetivo   vidida pelos milhares de nós, e, obviamente,
 querem esconder é que os negros continuam
 foi extrair ao máximo os capitais da colonia   essa fatia não chega para todos, então o que
 oprimidos, económica, social e culturalmente,
 usando a mão-de-obra local numa neo-escra-  fazemos e enfrentarmo-nos, espancarmo-nos,
 e sabe-se que nesta situação o elemento
 vatura, sem desenvolver infraestruturas  que   atropelarmo-nos e matarmo-nos por uma mi-
 oprimido dirige a sua violência ou frustração,
 permitissem uma verdadeira independência   galha dessa fina fatia. Porque não nos viramos
 em primeiro lugar, em direção ao seu semel-
 económica, obrigando assim as nossas mães   então para a causa e os causadores da nossa
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