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Bairro

            Era mais um dia, mais do mesmo, como sempre estava sentado à beira da minha janela a observar os
        rostos, já familiares, que ocasionalmente passavam. As ruas estavam desertas e qualquer movimento, por
        mais simples que fosse, despertava alguma curiosidade.
            Os dias passavam, cada vez mais tristes, a ausência de vida nas ruas lisboetas já começava a ter o seu
        peso. Ao longo destes dias, confinado das minhas aventuras, decidi dar uma oportunidade aos livros que
        ganhavam pó na estante. Desde Jean-Paul Sartre a Fernando Pessoa e seus heterónimos, mergulhei nas
        águas profundas das suas obras e creio que finalmente descobri o motivo do fascínio partilhado pelos pro-
        fessores de Português que me acompanharam ao longo da jornada académica.

             Desde pequeno, os filmes sempre me fizeram companhia e só recentemente percebi o verdadeiro po-
        der dos livros. Num filme estamos confinados ao que nos é mostrado, o mesmo não acontece com os li-
        vros. O espaço do livro somos nós que o construímos e cada um tem a possibilidade de interpretar o livro
        à sua maneira, no fundo incluindo o leitor na obra.
             Depois de algumas sessões de leitura dei por mim a criar histórias para cada pessoa que observava na
        rua que, por sinal, devido à situação atual, não eram muitas. Observei pessoas de todas as idades e fei-
        tios, uns mais aperaltados, outros mais excêntricos mas cada um com a sua magia.
             Comecemos com o Sr. X. Atribui-lhe este nome devido à sua figura misteriosa, até com as ruas vazias
        conseguia passar despercebido, todos os seus passos pareciam ter por detrás um raciocínio algo comple-
        xo, via-o todos os dias exatamente à mesma hora, vestia um sobretudo escuro e um chapéu preto, pare-
        cia uma espécie de James Bond mais antiquado. Sempre me questionei acerca do seu ofício, a rapaziada
        do bairro espalhava rumores de que era na realidade um ex-agente da pide, até me chegou aos ouvidos
        de que trabalhava para uma suposta máfia que ninguém conhecia. Na realidade penso que era um senhor
        comum como qualquer outro.
              No oposto do espectro uma das figuras emblemáticas do bairro é a Dona Florinda. Era uma senhora
        octogenária, que apesar de aparentar ter sido vencida pela vida ainda tinha muito para dar. Conheço-a
        desde pequeno, desde a época em que ainda nos restava algum contacto físico e os abraços eram apreci-
        ados e não temidos. A Dona Florinda sempre foi uma pessoa muito alegre, a única pessoa que alegra as
        ruas do bairro só com a sua presença. Sendo completamente sincero, não sei como consegue manter es-
        ta positividade ao longo de épocas difíceis como esta mas suspeito que esteja diretamente relacionado
        com a senhora pequena que a acompanha nos passeios matinais ao domingo.

              E, assim, introduzo mais uma personagem, Alice, a pequena estrelinha que acompanha a Dona Florin-
        da nos seus passeios e aventuras, as duas são inseparáveis e a prova viva de que independentemente da
        idade todos podemos aprender uns com os outros. A pequenita lá vai atualizando a avó com as novas tec-
        nologias e as bonecas da nova geração enquanto o papel da avó é mais as lições morais e histórias da
        vida antiga. Presumo que seja difícil para uma pessoa com alguma idade integrar-se nas novas gerações,
        sinceramente acredito que a ideia de um mundo digital consegue ser assustadora.
              Por falar em mundo digital, a Dona Florinda é responsável por um dos jovens, com quem mais falo,
        aqui do bairro, o seu neto. É um jovem calmo, apaixonado pelas novas tecnologias e por tudo o que elas
        trazem, ele está no mesmo ano escolar que eu, por isso além de falarmos sobre o mais recente avanço
        tecnológico ou o novo videojogo pelo qual tanto esperamos também discutimos alguns tópicos académi-
        cos.
              Na verdade não o vejo muito na rua, mas cada vez que o vejo está diferente. Uns dias com uma roupa
        mais formal, outros mais casual lá vai ele, sempre com duas peças, uma em cada ouvido, a ouvir o seu
        som.
              Dou por mim a perder a noção do tempo, embrenhado na minha própria fantasia que no fundo é a úni-
        ca coisa que me mantém são. Nunca gastei tantas tardes a observar o meio que me rodeava e julgo que,
        apesar de tudo, no meio de cada cidade cinzenta existe uma luz, só nos cabe a nós descobri-la.
                                                                                 Dinis Contreiras, n.º 6, 12.º CT4

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