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Um mundo cheio de feridas

             Num mundo de porcelana, onde ninguém podia sair de casa, havia uma boneca azul, deitada na va-
         randa a olhar para a lua. Ela perguntava-se o significado de toda a luta, de toda a sua vida e se valia a
         pena continuar com esta dor torturante que lhe preenchia o peito. Ela era só uma frágil boneca de porce-
         lana num mundo quebrado, repleto de infelicidade e dor.
             Esta pequena só queria viver à noite, isolada na escuridão, com os seus amigos sentimentos. Nomeou
         cada um deles, a Raiva, o Medo, a Tristeza, a Angústia, a Ansiedade, a Depressão e mais alguns outros,
         todos igualmente pesados. Cada vez que eles se encontravam no meio da escuridão, agrediam partes
         do seu corpo com facas e espinhos de emoções que a perseguiam todas as noites. Sentia um frio tomar
         conta do seu corpo, gritos e lágrimas que ela aprendera a controlar rolavam-lhe pelo rosto. Não fazia na-
         da e deixava-se magoar, se assim não fosse, que outras emoções iria ela sentir? Que outros amigos iria
         ela ter? Não conhecia outras sensações para além a dor e da solidão da noite.

             Durante o dia, esta pequena boneca nunca saía do quarto. Ouvia uns barulhos estranhos vindos do
         lado de lá da porta, mas, ao mesmo tempo que ouvia estes barulhos, o seu melhor amigo, o Medo, con-
         fortava-a, escondendo-a do mundo que existia para lá da porta. Ao fim de tantos anos de amizade com a
         boneca, o Medo cresceu e, pouco a pouco, foi-lhe espetando mais facas e agredindo-a cada vez mais.
             Passaram-se muitos anos de amizade com os sentimentos, muitas noites cheias de conversas com a
         lua, este ser brilhante que era a única luz que a boneca conhecia. Mas, numa noite de conversas, a lua
         ofereceu à pequena boneca um presente, mais um sentimento para ela conviver e nomear. A boneca
         decidiu chamar ao seu novo amigo Confiança.

              Inicialmente, o seu melhor amigo não estava feliz com a ideia de ter de a partilhar. Por isso, tentou
         por todos os meios afastar a boneca da Confiança, mas todas as suas tentativas foram em vão, pois
         passado algum tempo, a boneca e a Confiança já eram amigas. Por fim, vieram a tornar-se as melhores
         amigas. Pela primeira vez na sua vida, a boneca estava, finalmente, a sentir-se quente por dentro, uma
         sensação que ela amava e desejava a todo o custo continuar a sentir.    Depois de vários meses a sen-
         tir este calor, a boneca finalmente tomou a decisão de abrir a porta que a impedia de ver o dia. Assim
         que ela abriu a porta, deu de caras com uma outra boneca de porcelana, cor-de-rosa. Esta outra boneca
         estava rodeada de amigos sentimentos, mas em vez de feridas no seu rosto ela tinha uma suave cama-
         da de verniz que a fazia brilhar. Ao confrontarem-se, ambas as bonecas ficaram sem reação.

              Vendo toda esta situação, o Medo decidiu tomar uma posição, levando a boneca azul para o quarto
         novamente. Aqui, ela passou vários meses a repensar a sua vida e a conviver com os seus amigos senti-
         mentos, todos, exceto a Confiança, que foi afastada pelo Medo. Toda esta situação fez a boneca azul
         ficar desconfortável com a sua vida outra vez, ela sentia falta do calor, sentia falta da coragem e queria
         descobrir quem era aquela maravilhosa boneca rosa.
              Passaram-se vários meses, e a boneca azul já se tinha esquecido de todo o calor que sentira. Ela es-
         tava com os seus amigos sentimentos a falar com a Lua e enquanto todos estavam distraídos nos seus
         próprios pensamentos, a Confiança reapareceu para falar com a boneca. Ambas voltaram a dar-se bem
         e, passado algum tempo, a boneca sentiu-se forte o suficiente para abrir a porta do quarto, e assim o fez.
         Como esperado, a boneca rosa estava à espera de ver a porta abrir. Sem pensar duas vezes, ambas as
         bonecas se abraçaram e compartilharam um calor interior que não dá para ser descrito por palavras.
              As duas tornaram-se amigas e decidiram partilhar os amigos sentimentos, para que assim nenhuma
         delas tivesse de sofrer sozinha e ficar com feridas irreparáveis. Ambas estavam felizes, e, numa noite
         escura, a Lua ofereceu à boneca azul um novo amigo sentimento, só para ela, um sentimento que ela
         não poderia partilhar. Era um sentimento que a deixava ansiosa, mas que, ao mesmo tempo, trazia con-
         sigo um calor interminável. Depois de se tornarem amigos, a boneca azul decidiu nomear este novo sen-
         timento, chamando-lhe Amor.
                                                                                Beatriz Carranca, n.º 5, 10.º AV1




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