Page 170 - Girassóis, Ipês e Junquilhos Amarelos - 13.11.2020 com mais imagens redefinidas para PDF-7
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aborreceu com essa lembrança. O café sobre o fogão de lenha, eternamente
                      aquecido, naquele dia estava frio, velho, com um cheiro de mofo e Victor
                      desistiu de bebê-lo empurrando a xícara para a pia, com impaciência.


                      Saiu para o corredor em direção à biblioteca e a luz fraca da passagem revelou
                      o  mostrador  do  relógio  carrilhão  inacreditavelmente  imobilizado  em  seus
                      movimentos. O carrilhão, que jamais atrasara nem mesmo um segundo nos
                      últimos cinquenta anos, estava misteriosa e completamente parado, suspenso
                      do  seu  andar  incansável  e  marcando  a  hora,  minutos  e  segundos  exatos
                      daquela  madrugada  em  que  se  imobilizara.  Uma  hora,  quinze  minutos  e
                      quarenta e cinco segundos. Intrigado Victor abriu a porta com a moldura de
                      jacarandá no vidro bisotê para dar corda à engrenagem, mas porque estava
                      sem seu relógio de corrente, deixado no estojo sobre a mesa de cabeceira no
                      quarto, foi incapaz de arrumar os ponteiros na posição correta e, também por
                      conta  disso,  ele  nunca  soube  a  hora  exata  em  que  a  brisa  de  presságios
                      começou a soprar. Mas se deu conta da impertinência do vento sorrateiro
                      quando invadiu o corredor passando pelas frestas da larga porta da entrada
                      para vir sacudir o roupão de seda que ele trazia largado sobre o pijama. Victor
                      seguiu seu caminho pelo corredor até a biblioteca onde se acomodou na sua
                      poltrona favorita e ficou ali, no escuro, esperando e espiando o nascer do dia,
                      consciente dos rodopios loucos do vento lá fora.

                      Quando finalmente a claridade do sol rompeu a noite e inundou de cores a
                      cidade e o casarão Gatopardo, os rumores da casa, já muito conhecidos e que
                      davam  a  Victor,  inconscientemente,  a  certeza  da  continuidade  segura  dos
                      rumos da vida, naquela manhã soaram diferentes.

                      O movimento de Consuelo na cozinha preparando a primeira refeição não foi
                      o mesmo de sempre.


                      Houve as batidas das panelas de ferro sobre o fogão que não eram habituais,
                      o chiar da água fervendo na chaleira pareceu distante e impessoal, faltou a
                      voz do entregador de jornais que parava todos os dias uns minutos e tomava
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