Page 106 - As Viagens de Gulliver
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criados.  Apenas  receberam  ordem,  dirigiram-se  para  o  campo  em  que  eu
      estava, para ceifar o trigo. Afastei-me deles o mais que foi possível; mas movia-
      me  com  extrema  dificuldade,  porque  os  colmos  de  trigo  eram  algumas  vezes
      muito distantes uns dos outros, de maneira que quase se me tornava impossível
      caminhar naquela espécie de mata. Contudo, dirigi-me para um sítio do campo,
      onde  a  chuva  e  o  vento  tinham  acamado  o  trigo;  foi-me,  então,  totalmente
      impossível  ir  mais  além,  porque  os  caules  estavam  tão  entrelaçados,  que  não
      havia meio de atravessá-los e as barbas das espigas caídas eram tão fortes e tão
      agudas, que me picavam através da veste, penetrando-me na carne. Entretanto,
      percebi que os ceifadores distavam de mim umas cinqüenta toesas. Sentindo-me
      completamente exausto  e  reduzido  ao desespero,  deitei-me  entre  dois  sulcos  e
      desejava aí acabar os meus dias, representando-se-me a minha viúva desolada,
      com  meus  filhos  órfãos  e  deplorando  a  minha  loucura,  que  me  fizera
      empreender essa segunda viagem contra a vontade de todos os meus amigos e
      parentes.
          Nesta  terrível  agitação,  não  podia  deixar  de  pensar  no  país  de  Lilipute,
      cujos habitantes me haviam considerado como o maior prodígio que até então
      aparecera no mundo, onde era capaz de arrastar só com uma das mãos toda uma
      esquadra  e  de  praticar  outras  ações  maravilhosas,  cuja  memória  será
      eternamente  conservada  nas  crônicas  daquele  império,  embora  a  posteridade
      não queira acreditar, ainda que confirmadas por uma nação inteira. Refleti que
      mortificação não seria para mim parecer tão miserável aos olhos da nação, onde
      agora me encontrava, como o seria um liliputiano entre nós; no entanto, olhava
      isto como a menor das minhas fatalidades, porque é coisa para notar que os entes
      humanos são ordinariamente mais selvagens e mais cruéis em proporção ao seu
      tamanho e, assim refletindo, que podia eu esperar senão ser um manjar na boca
      do primeiro daqueles enormes bárbaros que me apanhasse? De fato, os filósofos
      têm  razão,  quando  dizem  que  não  há  grande  nem  pequeno  senão  por
      comparação.  Talvez  os  Liliputianos  encontrassem  alguma  nação  menor  em
      relação  a  eles,  como  me  pareceram,  e  quem  sabe  se  esta  prodigiosa  raça  de
      mortais não seria uma nação liliputiana em relação à de qualquer outro país, que
      não  descobrimos  ainda?  Mas,  aterrado  e  confuso,  como  estava,  não  fiz  então
      todas estas observações filosóficas.
          Um dos ceifeiros, acercando-se a cinco toesas do sulco em que estava
      deitado, fez-me recear que, dando mais um passo, me esmagasse com o pé ou
      me cortasse em dois com a foicinha; foi por isso que, vendo-o prestes a levantar
      o pé e a caminhar, comecei a soltar gritos de piedade tão fortes quanto o terror
      de  que  estava  possuído  me  consentiu.  Considerou-me  algum  tempo  com  a
      circunspeção de um homem que tenta agarrar um pequeno animal perigoso, de
      forma que não seja arranhado nem mordido, como eu próprio fizera algumas
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