Page 170 - As Viagens de Gulliver
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duas vezes o tamanho de uma foice vulgar. Sua Majestade, de acordo com o
costume do país, só se barbeava duas vezes por semana. Uma das vezes persuadi
o barbeiro a dar-me alguma espuma de sabão, da qual separei quarenta ou
cinquenta hastes dos pêlos mais fortes da barba recém-cortada. Peguei então
num pedaço de madeira fina e, cortando-a, dei-lhe a forma do cabo de uma
escova, no qual, com a ajuda da agulha mais pequena que consegui de
Glumdalclitch, fiz uma série de buracos a igual distância. Depois, muito
engenhosamente, raspando e afinando os pêlos com a minha faca, consegui
introduzi-los e fixá-los nos buracos, obtendo desta maneira uma escova bastante
aceitável, a substituir o meu pente, que, já quase sem dentes, estava praticamente
inutilizado. E em boa hora o fiz, pois não havia artista nenhum neste país, por
mais habilidoso que ele fosse, capaz de me fazer utensílio semelhante.
Isto fez-me lembrar um passatempo em que empreguei muitas das
minhas horas livres. Pedira às aias da rainha para, quando penteassem Sua
Majestade, me guardarem os cabelos que caíssem, obtendo ao fim de algum
tempo uma grande quantidade deles. Depois combinei com o meu amigo, o
marceneiro, que eu tinha às minhas ordens para pequenos trabalhos, que fizesse,
sob a minha direcção, a armação para duas cadeiras de braços, idênticas às que
tinha na minha caixa e, em seguida, com a ajuda de uma sovela fina, pequenos
buracos em volta dos sítios que eu designara para as costas e para o assento.
Através desses buracos entrelacei os cabelos mais fortes que me foi possível
escolher, exactamente como se faz com as cadeiras de verga em Inglaterra.
Quando estas cadeiras ficaram prontas, ofereci-as de presente a Sua Majestade,
a rainha, que as guardou na sua salinha, costumando exibi-las como curiosidades,
maravilhando, de fato, todos os que as contemplavam. A rainha insistiu para que
eu me sentasse numa delas, mas recusei-me terminantemente a obedecer-lhe,
alegando que preferia mil vezes a morte a colocar a parte menos honrosa do
meu corpo naqueles preciosos cabelos, que em tempos adornaram a cabeça de
Sua Majestade. Do que me restou destes cabelos (como sempre tive espírito
inventivo) fiz também uma elegante bolsinha de cerca de cinco pés de
comprimento e com o nome de Sua Majestade gravado a ouro, que eu, com o
consentimento da rainha, dei a Glumdalclitch. Tal bolsinha, para dizer a verdade,
era mais para vista que para uso, pois não era suficientemente resistente para
suportar as moedas maiores, pelo que ela não guardava nada dentro, a não ser
aqueles pequenos brinquedos que as crianças tanto apreciam.
O rei, que era muito musical, promovia frequentes concertos na corte,
para os quais várias vezes me levavam dentro da minha caixa, colocando-me em
cima de uma mesa para os ouvir; porém o barulho era tão ensurdecedor que mal
conseguia distinguir os tons. Tenho a certeza de que todos os tambores e
trombetas de um exército real rufando e soando mesmo junto dos vossos ouvidos