Page 93 - As Viagens de Gulliver
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quanto a restituir-me ligado, o imperador não ignorava que isso era uma coisa
      impossível;  que,  embora  eu  lhe  tivesse  arrebatado  a  esquadra,  estava  muito
      reconhecido para comigo em virtude de alguns bons serviços que lhe prestara,
      com relação ao tratado de paz; demais, que em breve se veriam livres de mim,
      porque  encontrara  na  margem  um  prodigioso  navio  capaz  de  me  levar
      embarcado;  que  dera  ordem  para  que  o  preparassem  consoante  às  minhas
      indicações e aproveitando o meu auxílio, de maneira que esperava, no prazo de
      algumas semanas, que os dois países ficariam livres de tão insuportável fardo.
          O  embaixador  regressou  a  Lilipute  com  esta  resposta,  e  o  soberano  de
      Blefuscu  referiu-me  tudo  o  que  se  havia  passado,  oferecendo-me  ao  mesmo
      tempo,  mas  em  segredo  e  confidencialmente,  a  sua  graciosa  proteção,  se
      quisesse  ficar  ao  seu  serviço.  Ainda  que  acreditasse  na  sua  sincera  proposta,
      resolvi nunca mais entregar-me nas mãos de nenhum príncipe, nem de nenhum
      ministro,  quando  podia  passar  sem  eles;  esta  a  razão  por  que,  depois  de  ter
      manifestado a Sua Majestade o meu justo reconhecimento pelas suas simpáticas
      intenções,  pedi-lhe,  humildemente,  que  me  desse  licença  para  me  retirar,
      dizendo-lhe que, visto a boa ou má estrela me haver proporcionado um barco,
      decidira  me  entregar  ao  oceano,  antes  de  que  houvesse  rompimento  de
      hostilidades  entre  aqueles  dois  poderosos  soberanos.  O  rei  não  se  mostrou
      ofendido  com  este  meu  discurso,  e  soube  mesmo  que  bastante  contente  tinha
      ficado com a minha decisão, e bem assim a mor parte dos seus ministros.
          Estas  considerações  levaram-me  a  partir  um  pouco  mais  cedo  do  que
      projetara,  e  a  corte,  que  anelava  pela  minha  saída,  contribuiu  para  isso  com
      solicitude. Quinhentos operários foram empregados no fabrico de duas velas para
      o meu barco, segundo as ordens, dobrando-se em treze o mais grosso tecido que
      havia  lá,  e  acolchoando-o.  Entreguei-me  à  tarefa  de  fazer  cordas  e  cabos,
      juntando dez, vinte ou trinta dos mais fortes que eles tinham. Uma grande pedra,
      que tive a sorte de encontrar perto da praia, após aturadas pesquisas, serviu-me
      de âncora; e gordura de trezentos bois serviu-me para encebar o meu escaler e
      para  outros  usos.  Tive  um  trabalho  insano  em  cortar  as  maiores  árvores  para
      fazer  remos  e  mastros,  no  que,  contudo,  fui  auxiliado  pelos  carpinteiros  dos
      navios de Sua Majestade.
          Decorrido perto de um mês, quando tudo estava a postos, fui ter com o rei
      para receber as suas ordens e, simultaneamente, fazer as minhas despedidas. O
      rei, acompanhado da família e corte, saiu do palácio. Deitei-me de bruços para
      ter a honra de lhe beijar a mão, que me estendeu muito graciosamente, assim
      como  a  rainha  e  os  jovens  príncipes.  Sua  Majestade  presenteou-me  com
      cinqüenta  bolsas  contendo  duzentos  spruggs  cada  uma,  com  o  seu  retrato  em
      tamanho natural, que meti logo nas minhas luvas para não se estragarem.
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